Igreja

Quais as mudanças proporcionadas pelo Concílio Vaticano II?

Teólogos debatem convergências e divergências do Concílio

Escrito por Elisangela Cavalheiro

04 SET 2013 - 09H02 (Atualizada em 25 AGO 2022 - 09H45)

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Depois de 50 anos, a Igreja Católica avançou ou retrocedeu em suas propostas? Dois teólogos de renome nacional, Frei Betto e Padre Marcial Maçaneiro, buscaram responder esses questionamentos.

Respondendo as mesmas perguntas, apresentaram em suas análises, divergências e convergências. Frei Betto ao falar sobre os avanços deste evento acredita que “frente aos avanços do Concílio, há hoje um evidente retrocesso na Igreja Católica”.

Padre Marcial destaca a “volta às fontes” aos primeiros séculos do Cristianismo. Para o teólogo, o Concílio "promoveu uma renovação ou reforma a partir dos elementos essenciais da Igreja".

Leia sobre esses e outros assuntos, como a ação social desenvolvida pela Igreja em todo o mundo, o desafio do diálogo inter-religioso, o surgimento da Teologia da Libertação e as dificuldades que a Igreja enfrenta no desafio da evangelização, em uma entrevista de fôlego!

QUAIS AS PRINCIPAIS MUDANÇAS PROPORCIONADAS PELO VATICANO II?

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Frei Betto.

Frei Betto – O Concílio Vaticano II (1962-1965) aboliu a missa em latim, a confissão auricular, o celebrante de costas para os fiéis, a ideia de que os judeus foram responsáveis pela morte de Jesus, e também de que só a Igreja Católica é via de salvação em Jesus Cristo.

O Concílio introduziu o conceito de Igreja como “povo de Deus”, e não mais como “sociedade perfeita”, e estabeleceu diálogo com o mundo moderno, as ciências e as religiões não cristãs.

Muitas dessas conquistas entraram em retrocesso nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Este celebrou missa em latim, revalorizou a confissão auricular, voltou a afirmar que a Igreja Católica é o único meio de salvação em Jesus Cristo e não incrementou o diálogo inter-religioso.

Frente aos avanços do Concílio, há hoje um evidente retrocesso na Igreja Católica.

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Pe. Marcial Maçaneiro.

Padre Marcial Maçaneiro – Antes de tudo, foi a "volta às fontes": a Igreja voltou à Palavra de Deus e aos primeiros séculos do Cristianismo, reencontrando-se no Novo Testamento e nos primeiros testemunhos da Igreja nascente (Irineu, Tertuliano, Inácio de Antioquia, Agostinho, etc.).

Com isso, o Vaticano II não estacionou num modelo de Igreja formatado a partir da Cristandade Medieval, e promoveu uma renovação ou reforma a partir dos elementos essenciais da Igreja: povo de Deus em comunhão, comunidade teologal (fé, esperança e caridade), peregrina na Terra, sinal de salvação para todos os povos e culturas, essencialmente missionária. As outras mudanças que aconteceram foram, por assim dizer, decorrências desta "volta às fontes".

Podemos lembrar algumas:

a) supera-se uma visão apenas hierárquica de Igreja, em vista de uma Igreja de comunhão com base no batismo, à luz bíblica do Povo de Deus em Aliança: assim, todos os fiéis batizados (leigos, religiosos e clero) formam o único e universal povo de Deus, de caráter sacerdotal, real e profético, para o qual a hierarquia é constituída para servir, nas pessoas dos diáconos, presbíteros e bispos.

b) vai-se da visão jurídica à visão sacramental de Igreja: claro que a Igreja tem uma dimensão jurídica (normativa, societária, objetiva). Mas esta dimensão não define, por si só, tudo o que a Igreja é. O Vaticano II recuperou a visão sacramental de Igreja: uma comunidade-sinal de salvação, em quem atua o Cristo Ressuscitado, especialmente pela Palavra, pelos Sacramentos e pelas virtudes teologais.

A Igreja é essencialmente sacramento geral de salvação, amparada pela dimensão jurídica que a constitui, mas sempre a partir de sua missão central, que é a proclamação do Evangelho a todos os povos, em vista da nova humanidade em Cristo.

c) na esteira de revisão de um certo juridismo, o Concílio esclareceu de uma vez por todas que o episcopado é verdadeiro sacramento, de caráter pastoral, em regime de comunhão no Colégio Episcopal presidido pelo Bispo de Roma (o papa). Pois alguns defendiam a tese de que o episcopado é apenas jurisdição, como se fosse um simples "presbiterado com autoridade ampliada juridicamente".

Mas a Igreja discerniu em Concílio que o episcopado é um grau da Ordem, de natureza sacramental. Além disso, para o bom exercício do episcopado, não basta a obediência objetiva às normas, mas é preciso viver em comunhão efetiva e afetiva com os demais bispos e suas Igrejas Locais, em regime de comunhão. Isto acentuou o caráter pastoral dos Bispos, verdadeiros pastores para o rebanho.

d) da formalidade do rito, ao mistério celebrado: com a volta radical às fontes bíblicas e patrísticas, o Concílio vinculou a Liturgia ao seu núcleo fundamental, que é o Mistério Pascal de Jesus. Assim, a liturgia retomou seu sentido original de sinal e meio da graça de Jesus, favorecendo uma reforma nos ritos, para que a graça sacramental fosse melhor atualizada na Igreja.

O centro da liturgia não é a forma ritual, mas sim a graça pascal de Jesus comunicada nos sacramentos. Por isso, o rito foi mudando - não de qualquer modo - mas a partir do mistério celebrado. O latim continua sendo uma das línguas litúrgicas, mas ao lado de outros idiomas, como aconteceu em Pentecostes, quando os primeiros crentes ouviram o testemunho de Pedro, cada qual na sua língua (persas, árabes, etíopes, gregos, macedônios, medos, elamitas, judeus e prosélitos).

Leia MaisQual a diferença entre diálogo ecumênico e diálogo inter-religioso?Papa explica quais as três dimensões do ecumenismo e) do fechamento ao diálogo 'proclamai-vos': em torno do Vaticano 1º, a Igreja havia fechado algumas janelas à Modernidade, se distanciando do contato com as Ciências, a Política nacional e internacional, os Meios de Comunicação e outros movimentos culturais.

Claro que havia conflitos de ambos os lados. Mas não se poderia seguir no fechamento, já que a missão da Igreja é propor e repropor, em novas expressões, a Boa Nova permanente de Jesus!

Era preciso aprender do próprio Jesus e dos primeiros evangelizadores, como Pedro e Paulo, a encontrar o mundo em praça aberta! 

Era preciso que a Igreja - concretamente os leigos, religiosos e clero - fosse às praças, às universidades, aos movimentos culturais e ao espaço da Comunicação. Senão, a voz da Igreja ficaria cada vez mais tímida, distante e solitária, como se o Evangelho não tivesse mais nada a dizer para o mundo...

Foi com muita vitalidade que o Vaticano II assumiu a "nova evangelização" nas coordenadas do tempos recente, elevando a voz da Igreja em outros espaços, como o cenário das nações (ONU e Direito Internacional), o cenário da democracia (com a Ação Católica e os valores da Doutrina Social da Igreja), dialogando também com o mundo do saber (através de publicações e centros de conhecimento, como as PUC's no mundo inteiro). Dentro desta agenda de contatos, o Concílio valorizou muito o diálogo entre os próprios cristãos, depois de séculos de divisão. Isto, em obediência à palavra de Jesus: "Que sejam um, para que o mundo creia" (Jo 17,21-23).

f) da uniformidade à comunhão: também se ampliaram a experiência de "catolicidade", ou seja, de "universalidade" da Igreja. Afinal, unidade não é uniformidade, mas sim comunhão! A Igreja não é refém de uma cultura, de uma língua ou um território; ela é universal, constituída de todos os povos e nações, enraizados no mesmo e único Cristo - redentor de toda a humanidade, dos judeus aos gentios, como dizia Paulo.

Assim, o Concílio confirmou a beleza de uma Igreja unida na diversidade de ministérios, carismas e apostolados, como corpo de muitos membros (cf. Rm 12). Comunhão não é "mesmice". Comunhão é unidade na diversidade: uma só fé, com diferentes expressões teológicas; uma só graça, mas multiforme; os mesmos sacramentos, mas com ritos litúrgicos diversos (romano, ambrosiano, bizantino, siríaco, maronita, armênio...). Isto enriqueceu a evangelização com novos métodos e programas pastorais, dando conta da internacionalidade da Igreja e articulando melhor as Dioceses entre si, e o seu conjunto com a sede romana.  

SOBRE O PAPEL SOCIAL DA IGREJA, LEMBRANDO A FALA DO PAPA JOÃO XXIII “A IGREJA É DE TODOS, MAS PRINCIPALMENTE QUER SER UMA IGREJA DOS POBRES”. COMO OS SENHORES ANALISAM A AÇÃO LIBERTADORA DA IGREJA PARA OS MAIS POBRES AO LONGO DESSES 50 ANOS?

Frei Betto – A “opção pelos pobres” predominou nos últimos 50 anos, sobretudo na América Latina. Hoje ela consta mais nos documentos eclesiásticos que na prática da Igreja Católica. A presença dos pobres na Igreja, através das Comunidades Eclesiais de Base e das pastorais populares, suscitou a Teologia da Libertação. Isso assustou Roma, pois seus adeptos, ao questionar as elites opressoras, questionavam também bispos e instituições da Igreja comprometidos com essas elites. 

Hoje, por força dos movimentos espiritualistas importados da Europa, quase já não se pratica na Igreja Católica a opção pelos pobres. Os pobres preferem as Igrejas evangélicas... Assim, os direitos dos pobres, como a reforma agrária, são pouco defendidos pelos bispos católicos.  

Padre Marcial Maçaneiro – A predileção pelos mais necessitados é um valor do Evangelho, vivido pelo próprio Jesus e os apóstolos. Várias vezes isto é presente na orientação dos apóstolos, como Paulo, Pedro e Tiago. Jesus mesmo afirmou: "Tudo o que fizerdes a um desses meus irmãos, mais pequeninos, é a mim que o fizestes" (Mt 25,40). Também entre as virtudes teologais, a caridade vem em primeiro lugar: "Estive como fome e me destes de comer; estive maltrapilho e me vestistes; doente e cuidaste de mim" (Mt 25).

Contudo, ao lado da caridade individual, zelosa no contato entre as pessoas, a Igreja promove a caridade social: articulada, programada, com base em métodos eficazes, mirando às mudanças estruturais que promovam mais justiça para os indivíduos e as sociedades. Foi a partir daí - sempre sob a luz da Bíblia e dos grandes santos - que a Igreja desenvolveu a sua Doutrina Social. Isto cresceu e se organizou, em nível mundial (Cáritas, Pão para o mundo, Ajuda à Igreja que sofre, Misereor, etc.) e, em nível local, com as Pastorais Sociais das dioceses.

Leia MaisIndulgências: Profunda e viva experiência com a misericórdia de DeusTal cuidado com os pobres (doentes, órfãos, migrantes, etc.) nunca faltou ao longo dos séculos. Mas precisava se organizar com agentes preparados e métodos adequados aos novos tempos, diante das novas democracias, das ditaduras ainda existentes, da classe operária, da economia global e da revisão geral do Direito garantidor da dignidade e dos bens básicos para os cidadãos.

Desde o Vaticano II para cá, este "serviço social da caridade" cresceu e se consolidou: temos as Cáritas mais presentes, novas campanhas, Fóruns de Justiça e Paz, defensoria pública motivada pela Igreja, com as Pastorais Sociais articuladas em muitos países e cidades: Operária, Migrantes, Mulher Marginalizada, Menores, Direitos Humanos, etc.

O que hoje nos desafia é que se acentuou uma "cultura do individualismo" muito forte, afastando as pessoas da solicitude social: enquanto as organizações avançam, com novos serviços, tem gente que se anestesia e se faz inerte diante das questões sociais, vivendo até uma fé um pouco distante daquilo que Jesus ensinou sobre as obras de misericórdia.

Este é o desafio recente, para o qual ajuda muito uma retomada firme do Vaticano II, especialmente do documento "Gaudium et spes" (Alegria e esperança), que é o documento social do Concílio.

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"Tem gente que se anestesia e se faz inerte diante das questões sociais", padre Marcial.


FOI COM O CONCÍLIO VATICANO II QUE A IGREJA SE ABRIU AO ECUMENISMO E AO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO. ATUALMENTE, A PARTIR DE QUE EVENTOS/FATOS PODEMOS PERCEBER ESSA ABERTURA, ESSA PROXIMIDADE. COMENTE.

Frei Betto – Sim, o Concílio deu grande estímulo ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso. Hoje, são fatos do passado. Bispos qualificam as Igrejas evangélicas de “seitas” e encaram com desdém seus cultos. O próprio papa Bento XVI, ao visitar a Alemanha, chamou os muçulmanos de “violentos”, e ao visitar os EUA foi a uma sinagoga, mas se esqueceu de ir a uma mesquita, justamente agora que os muçulmanos são vistos nos EUA como potenciais terroristas… Há, sim, na base católica as duas formas de diálogo, mas sem suficiente respaldo da hierarquia.

Padre Marcial Maçaneiro – Na verdade, muito antes do Vaticano II a Igreja manteve diálogo e proximidade com outras Comunidades cristãs e até com crentes não-cristãos. Isto é evidente nos Atos dos Apóstolos, nas comunidades coordenadas pelo apóstolo Paulo e depois, com Irineu, Justino, Nicolau de Cusa, Raimundo Lúlio, Pedro Venerável, Francisco de Assis e outros - pra mencionar apenas os mais clássicos!

O que aconteceu é que, por volta de 1600, a Igreja teve dificuldades com outras comunidades cristãs, vindas da Reforma, que se organizaram como "Igrejas Nacionais" (ligadas diretamente a governos locais). Essa mistura de fé com poder civil, em níveis efetivos de mando e administração, trouxe dificuldades ecumênicas que não eram doutrinais, mas sim de gestão de poder. Também da parte católica, os "papas reis" e a junção entre autoridade religiosa e poder temporal foi problemática...

Daí que viveu-se um período de dificuldades, com distanciamento, falta de estima e até ignorância sobre uns e outros, dando espaço para calúnias, proselitismos e faltas de caridade, mesmo entre gente cristã. Contudo, de 1910 até os anos 60, quando aconteceu o Vaticano II, cresceu e se fortaleceu muito o diálogo entre cristãos (e também com não-cristãos), especialmente na Europa, América do Norte e Ásia, de tal modo que esta "onda" de iniciativas chegou até o Concílio.

Os documentos "Nostra aetate" (diálogo com não-cristãos) e o documento "Unitatis redintegratio" são resultado deste movimento de unidade que vinha já antes do Concílio, desde os anos 1910-1960. Afinal, fica complicado querer evangelizar quando os próprios cristãos estão divididos: "Como acreditar no Evangelho, salvação para todos, se os próprios cristãos não o seguem no relacionamento entre si ?".

Muito do ceticismo diante do Evangelho e da visão pessimista sobre o Cristianismo vinha da divisão entre as Igrejas: era um escândalo, uma ferida, que prejudicava muito o crédito das pessoas no anúncio do Evangelho. Na Europa, ainda hoje se acusam os cristãos divididos de terem sido fracos, pouco articulados, a ponto de ter havido duas guerras mundiais justamente no continente mais cristão, com mais Igrejas históricas!

Leia MaisPapa encoraja padre que defende a comunidade LGBTQIA+Comunidade, Paróquia, Diocese, Arquidiocese: Como a Igreja se organiza? O projeto do Paráclito é a unidadeA partir do Concílio, a Santa Sé inaugura dois centros de contato, estudo, diálogo e colaboração mútua, um entre Igrejas Cristãs (Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos) e outro, entre a Igreja e as grandes religiões mundiais (Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso).

Ambos têm contato, em cada país, com as Comissões de Diálogo das conferências episcopais. Também no ensino da Teologia da Formação Pastoral, a partir dos anos 70, teologia ecumênica e diálogo inter-religioso se tornaram disciplinas de currículo, com 30, 60 ou até 90 horas/aula.

O desafio é que ainda temos agentes de evangelização sem formação histórica/cultural/teológica para este tipo de ministério. Há quem faça muito, com pouca formação; e há quem faça pouco, porque nem recebeu tais conteúdos! Mas o caminho prossegue: a CNBB anima e acompanha uma média de 16 projetos de diálogo entre Igrejas e com outras Religiões, em vários estados brasileiros.

Há fóruns, plataformas, agências de promoção humana, pesquisas, em muitas Universidades Católicas, Dioceses e Centros Pastorais, incluindo a "Casa da Reconciliação" (centro de referência da CNBB, em São Paulo) e algumas Pós-graduações para pastoralistas e teólogos especializados em ecumenismo e diálogo inter-religioso. Falta, contudo, conhecer os documentos da Igreja sobre o assunto: Unitatis redintegratio, Nostra aetate, encíclica Ut unum sint, documento Diálogo & Anúncio, o Diretório Ecumênico da Santa Sé, etc.

Não podemos evangelizar divididos, pondo em descrédito o Evangelho, nem deixar as relações entre Igrejas a mercê do "mercado religioso", que reduz a graça a uma mercadoria de barganha. No Brasil, desde 2008, temos até uma plataforma que reúne Novas Comunidades católicas, representantes da RCC e da CNBB, junto com Comunidades Evangélicas e Igrejas Pentecostais, para orar, ouvir juntos a Palavra de Deus e discernir caminhos honestos de testemunho, num Brasil cheio de confusão religiosa...

Esta plataforma de chama ENCRISTUS - Encontro de Cristãos em busca de Unidade e Santidade: reúne cerca de 500 líderes nacionais, com representação da CNBB e contato direto com o Diálogo Católico-Pentecostal do Vaticano. Pena que tem tantos evangelizadores católicos surdos para a reconciliação dos cristãos, por falta de formação e visão profética...

Há também, com coordenação da CNBB, várias comissões de diálogo em funcionamento: Católico-Judaica, Católico-Anglicana, Católico-Presbiteriana, ao lado de Núcleos de diálogo com muçulmanos e tradições afro-brasileiras. Para tudo isto, seguem-se as diretrizes da Santa Sé, com gente competente e relatórios anuais.


"Há, sim, na base católica as duas formas de diálogo, mas sem suficiente respaldo da hierarquia", Frei Betto.


FOI COM O CONCÍLIO VATICANO II QUE NASCEU A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO. COMO COMPREENDÊ-LA ATUALMENTE?

Frei Betto – A Teologia da Libertação nasceu da prática libertadora dos cristãos de classes populares, participantes de CEBs e pastorais populares. Ela se disseminou pela América Latina, África e Ásia. Na Europa e nos EUA, muitas comunidades cristãs se identificam com ela.

A Teologia da Libertação já não chama atenção porque não existem processos revolucionários, como o da Nicarágua, em 1979, nos quais ela exercia o papel de legitimação da luta e da fé dos cristãos. No entanto, ela prossegue, não morreu, está viva nas CEBs, nos Círculos Bíblicos, em inúmeras comunidades. E, de certo modo, influi nos documentos oficiais da Igreja Católica, que sempre abordam mais a conjuntura econômica e social de nossos países, o que não acontecia antes da Teologia da Libertação. Hoje, a Teologia da Libertação se abre também aos temas da atualidade, como ecologia, astrofísica, biogenética, etc.  

Padre Marcial Maçaneiro – Não é muito preciso nem científico dizer que a Teologia da Libertação nasceu com o Concílio... O que houve, é que os processos encaminhados a partir do Vaticano II favoreceram o estudo da Teologia Pastoral e novos programas de evangelização, como a Catequese Renovada, as Pastorais Sociais, o Protagonismo dos Leigos, os Ministérios não-ordenados, a presença de Congregações religiosas em meios pobres, a dinamização das Missões, a revisão dos estudos teológicos, o diálogo entre fé e razão, entre Evangelho e Sociedade. Foi neste conjunto de fatores que despontaram várias "teologias da libertação", com focos e terrenos diferentes, no Peru, México, Chile, Bolívia e Brasil - entre outros países.

Algo parecido aconteceu na África e na Ásia. Eram teologias mais pastorais do que doutrinais. Focavam a dimensão profética da Igreja, com base nas bem-aventuranças de Jesus, atualizando as "obras de misericórdia" num contexto de conflitos sociais, busca de direitos e afirmação da dignidade do povo, a começar dos excluídos. Alguns conflitos surgiram por conta de ser uma novidade, com vocabulário novo e mediações analíticas mais modernas, longe da teologia escolástica de costume. Claro, alguns foram extremados e até se confundiu (sem muito discernimento...) a teologia da libertação com todo tipo de movimento reivindicatório. Isto hoje já foi resolvido, com documentos, estudos e novas posturas.

As teologias da libertação serviram como alerta a uma Igreja que estava ficando longe do amor aos pequeninos. Contudo, é bom deixar claríssimo, aqui, que a predileção pelos mais pobres é valor do Evangelho, ensinado por Jesus! Não se precisaria de nenhuma teologia pra lembrar isso... Se a teologia da libertação insistiu neste ponto, é porque alguns cristãos estavam mesmo se esquecendo do amor de Deus pelos carentes, órfãos, migrantes e pobres.

Atualmente, as teologias da libertação se consolidaram e já são admitidas como uma "escola histórica" da Teologia, ao lado de outras, com seus autores, métodos e propostas. Delas se desdobraram outras teologias pastorais, com focos diversificados: Teologia da Terra, Teologia Feminista, Teologia Negra, Teologia Social, etc. O mais importante é não esquecer o lugar preferencial dos mais pobres na Evangelização, entendendo as diferentes expressões de pobreza: doentes, migrantes, menores de rua, idosos abandonados, trabalhadores injustiçados, etc. Com ou sem as "teologias da libertação" essas pessoas merecem lugar próprio na missão da Igreja, como ensinou Jesus e como aprendemos de tantos santos e santas da caridade social.  

QUAIS FORAM OS RETROCESSOS DA IGREJA, APESAR DO ESTÍMULO DO CONCÍLIO VATICANO II? COMENTE.

Frei Betto – Estão apontados na resposta à pergunta um. Mas posso resumir afirmando que o Vaticano ignora, hoje, o profetismo do Concílio, não consegue sintonizar a Igreja Católica com a pós-modernidade, encara com desconfiança o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, valoriza em demasia movimentos católicos espiritualistas comprometidos com o mundo das finanças, e faz vista grossa frente ao escândalo da pedofilia. Felizmente, o Espírito de Deus é muito mais forte que a Igreja e sopra onde quer...  

Padre Marcial Maçaneiro – Recentemente, há retrocessos ou riscos de retrocesso, não por causa do Vaticano II, mas por conta do momento cultural em que vivemos, num cenário cheio de inseguranças e relativismos. Vou citar alguns fatores de crise, que formam opinião e, a partir daí, prejudicam algumas agenda que o Vaticano II abriu.

Crise das instituições transmissoras de valores: a família, a religião (de modo geral), os mestres, a educação, o direito... Tudo isso sofreu mudanças e até se desestabilizou, deixando "na mão" as gerações mais jovens. Igreja, escola e família entraram numa crise de modelo: não são mais do jeito que eram 20 anos atrás.

Os valores continuam valendo, mas estamos com crise nas instituições que os transmitiam... Daí que há tantos jovens cheios de motivação, mas sem rumo; ou pessoas que ficam sozinhas na afirmação de alguns valores, com base na sua vivência pessoal, mas desconfiadas de tudo o que se refere à Igreja, à família tradicional e à educação escolar. Então temos pessoas com mais ou menos valores, meio que navegando sem bússola num oceano de opções morais, religiosas e políticas.

Daí, vêm duas atitudes extremas: tem gente que parte para o relativismo, achando que não há mais valores estáveis, porque o normal é que tudo mude, se desmanche, e este negócio de "valores" depende só da cabeça de cada um, sem nenhuma objetividade no domínio da Educação, do Direito e da Sociedade… Do outro lado, há o extremo do fundamentalismo: não se analisa direito as mudanças históricas e culturais, nem se preocupa em propor os valores com nova linguagem, mas simplesmente se fecha ao diálogo, ficando longe e até agressivo com quem pensa diferente, num tipo de "gueto", em posição claramente sectária.

Ora, os analistas sociais, educadores e até os pronunciamentos de João Paulo II e Bento XVI dizem que nem o relativismo (de um lado), nem o fundamentalismo (do outro) são respostas inteligentes ao momento cultural que vivemos hoje. O mais inteligente é fazer leituras interpretativas dos fatos (objetivos e subjetivos), com olhar ponderado e crítico, distinguindo os fatores envolvidos e buscando respostas, novas linguagens e ajustes na Educação, na Evangelização, etc.

Isto dá mais trabalho e não é coisa que se improvise! Tanto é, que a gente vê por aí grupos que militam radicalmente pelo relativismo (nada é estável, tudo é subjetivo...) e outros pelo fundamentalismo (volta ao modelo antigo, atitude unilateral). É esse pessoal - dos dois lados - quem mais critica o Vaticano II, por miopia de visão: como não conseguem analisar com inteligências os processos históricos e culturais, acham que o Concílio (sozinho...) foi que gerou tanto o relativismo, quanto o fundamentalismo... Coisa muito equivocada, é claro!

Essas tendências não foram forjadas por nenhum Concílio, nem por alguma Universidade ou classe social. Estamos vivendo processos de mudança, em nível global e paradigmático, como já vivemos no fim da Idade Média, e na crise da Modernidade Avançada. Estamos numa mudança de época, abrindo um novo milênio, com novas conexões e desafios globais. 

Neste caso, o mais inteligente é LER DE NOVO com inteligência propositiva, os documentos do Vaticano II, distinguindo neles o cenário da época (que de fato mudou...) e os princípios fundamentais (sempre válidos) para a evangelização e a proposta de um Projeto de Humanidade inspirado no Evangelho. Quem fizer isto, vai ter muito para dizer hoje e amanhã. Quem não fizer isso, fica ignorando não só o Vaticano II, mas todos os processos culturais mais recentes, dos anos 60 até hoje.

Essa crise de instituições é atravessada por fenômenos novos, que se cruzam e tocam pessoas. Especialmente três: globalização, midiatização da cultura, emergência da subjetividade. A globalização aproximou fronteiras, mas distinguiu ainda mais as identidades, que hoje balançam entre elementos universais (que aproximam, que fazem dialogar) e elementos particulares (que distinguem e podem distanciar). 

Leia MaisGeração Tik Tok: de volta à massa?Algoritmos Digitais e sua interferência no comportamento das pessoasSaúde mental em um mundo virtualVocê já pensou sobre como o mundo está mudando? A midiatização é a extensão e rapidez dos contatos, das interações, por mídias velozes, não só empresariais, mas acessíveis a qualquer sujeito que queira opinar e emitir mensagens. Com isso, a noção de tempo e espaço ficou alterada: tempo, "é pra ontem!" (tudo corre veloz!) e o espaço geográfico "perdeu fronteiras" (todo mundo se conecta com todo mundo). 

Com essa agilidade, os mais jovens vivem com outras perspectivas: com a velocidade dos contatos, o que vale são experiências intensas (diminui a disposição pra vivenciar projetos de longo prazo, como vocação pra vida toda, processos políticos, formação demorada) - vale o que for mais intenso!

Então, fica difícil seguir carreira longa, repensar opiniões, etc. Com tudo isso acontecendo, algumas propostas do Vaticano II continuam valendo, mas precisam de novos métodos, adequados às novas gerações: o diálogo ecumênico enfrenta a dificuldade do relativismo, ou do fundamentalismo, conforme as opiniões, ou então parece tarefa tão complicada, que só restam as expressões mais afetivas, emocionais...

Também a ação social fica prejudicada: leva tempo, exige formação ampla, tem que ter paciência histórica para se meter nos processos sociais, administrativos, políticos... Do ponto de vista da espiritualidade, busca-se vivências intensas, impactantes, com resultado imediato! Assim, fica difícil falar de conversão continuada, de discipulado pra vida inteira, etc. Veja, que são essas as dificuldades que afetam as propostas do Vaticano II, ao lado de outras que não podemos tratar aqui, por falta de espaço e necessidade de aprofundar.

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Resumindo: o cenário do Vaticano II mudou, mas os seus princípios continuam válidos e até urgentes. Mas temos que repropor isto com atenção às novas gerações e aos processos de mudança que marcam o tempo presente, com a crise das instituições, a globalização da cultura, a afirmação da subjetividade e as tendências extremistas optadas por alguns grupos. 

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