Por Tatiana Bettoni Em Espiritualidade

Modalidades do tráfico humano: Exploração sexual de mulheres e crianças

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Muitas vezes, basta uma proposta de emprego no exterior para que um sonho se torne pesadelo. O tráfico humano para fins de exploração sexual dentro e fora do país atinge cerca de 56 mil brasileiros e brasileiras. Cerca de 80% são mulheres e crianças abusadas em atividades sexuais forçadas.

Os traficantes, também chamados aliciadores, detêm os documentos e pertences das vítimas, que já chegam ao destino devendo enormes quantias em dinheiro para saldar dívidas de passagens, comida, vestuário, estadia, etc. A maior parte das brasileiras traficadas são enviadas para o mercado sexual europeu, principalmente da Espanha.

O Brasil participa de acordos internacionais, convenções, protocolos, pactos e declarações, entre eles o Protocolo Opcional da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (2001) e o Protocolo Opcional à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis (2001).

Além disso, desde 2004, o Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado e Protocolos Adicionais – mais conhecida como Convenção de Palermo – que disponibilizou instrumentos para operacionalizar a cooperação jurídica entre os 100 países participantes.

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) é uma das agências especializadas da ONU. Em 1997, a UNODC lançou a campanha internacional Coração Azul, uma iniciativa de conscientização para lutar contra o tráfico de pessoas e seu impacto na sociedade. Aqui no Brasil, tem a cantora Ivete Sangalo como embaixadora. Clique aqui para conhecer a Campanha Coração Azul.

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2014: "FRATERNIDADE E TRÁFICO HUMANO"

 

Não adianta reprimir (perseguir e condenar os traficantes), se prevalecerem as situações sistêmicas de pobreza, a exclusão e a desigualdade. (Tania Laky - assessora da CNBB)

A Igreja Católica no Brasil realiza a Campanha da Fraternidade com o tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou”. Uma das especialistas consultadas pela CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para compor o texto-base de 2014 é a professora Tania Teixeira Laky de Souza - Doutora em Serviço Social pela PUC/SP; Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP; Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP; Bacharel em Direito e Bacharel em Serviço Social pela PUC/SP. Dra. Tania Laky é autora do livro  “Tráfico Internacional de Mulheres: Nova face de uma velha escravidão”.

Confira a entrevista que a assessora da CNBB concedeu ao A12.com por email:

A12 - Em suas pesquisas, teve contato com quais casos?

Tania Laky - Fundamentalmente, com mulheres que encontrava no Aeroporto Internacional de Guarulhos, São Paulo, em situação de “não-admitidas” – por as autoridades do país de destino desconfiarem do motivo da viagem (as mulheres traficadas destinadas à exploração sexual aparentam um “perfil” conotado), expulsas do país estrangeiro por se encontrarem em situação ilegal, e mulheres resgatadas do tráfico em países estrangeiros. 

A12 - Por que o tráfico de mulheres é o mais frequente?

Tania Laky - O processo de globalização e o distanciamento, cada vez mais acentuado, entre países ricos e países pobres tem propiciado a ocorrência de movimentos migratórios, instáveis no desenho dos seus fluxos, mas persistentes enquanto processo e enquanto fenômeno, ainda que, por todo o lado, surjam movimentos cívicos e políticas governamentais que, por motivos diversos, tentam controlar a dimensão e a incidência desse trânsito de indivíduos.

Apesar de a experiência migratória ter estado, muitas vezes, associada ao masculino, a participação de mulheres nesse fenômeno aumentou ao ponto de ser incontornável abordar o tema sem considerar a perspectiva analítica de gênero.

As mulheres representam quase metade da população que migra, em termos globais, chegando a superar a metade do fluxo migratório no ano 2000 nos países desenvolvidos. Segundo o informe da Organização Internacional de Trabalho (OIT), de 1996, a “feminização das migrações” é um dos fenômenos sociais e econômicos mais impactantes dos últimos tempos.

Um aspecto que caracteriza as migrações contemporâneas é a assim chamada feminização. De acordo com dados das Nações Unidas, o número de mulheres que migram aumentou nas últimas décadas, alcançando 49,6% do total, em 2005. A feminização das migrações é também sintoma de mudanças qualitativas da presença feminina no contexto da mobilidade humana. Hoje a mulher não migra apenas para acompanhar ou se reunir com os familiares, mas também para buscar emancipação, dignas condições de vida ou melhores salários para sustentar a família. Indica também uma nova perspectiva, uma nova abordagem do fenômeno migratório que busca visibilizar a presença da mulher em suas características específicas. [...] A presença expressiva de mulheres nas migrações internacionais levanta novos desafios. O enfoque de gênero, nos últimos anos, ressalta a peculiaridade da migração feminina que nem sempre pode ser equiparada à migração masculina, tanto em termos de motivações e oportunidades, quanto em termos de consequências e vulnerabilidades. [...] a migração pode ser vista como um “processo seletivo”. Em geral, constata-se, as mulheres encontram mais obstáculos em migrar do que os homens, devido, sobretudo, aos estereótipos e estratificações de gênero que, em muitos lugares, impedem-lhes um real acesso aos recursos financeiros e às informações necessárias para a migração. [...] Sofrem preconceitos tanto no lugar de saída quanto no lugar de chegada. São mais facilmente aliciadas em redes de tráfico para fins de exploração sexual. As trabalhadoras migrantes, sobretudo as envolvidas com trabalhos domésticos – incluindo também o cuidado de idosos e crianças – podem sofrer várias formas de violência.

O que torna, então, a migração no feminino tema de relevante preocupação e instigação para acesos debates?

Um desses apelos refere-se, precisamente, à associação de significados entre migração feminina e perigo sexual: essa conexão de termos desperta a sensação de que a migração de mulheres constitui-se eminentemente negativa, que inquina e contagia diversos planos da ordem social, política, econômica e, mesmo, de segurança pública.

 

A Campanha da Fraternidade traz para o debate, precisamente, o respeito pela dignidade humana, alertando para as práticas sociais que limitam o acesso à liberdade pelos indivíduos (...)

Entretanto, de modo ambíguo, e como aparente expiação de eventuais sentimentos de culpa, a sociedade elege, no conjunto daquelas mulheres migrantes, as suas vítimas, que, curiosamente, são também prostitutas, mas não todas: apenas aquelas jovens, se possível crianças e adolescentes – para as quais ainda não se atribuiu o direito legal de livre escolha. Mas, ainda que as vítimas possam ser mulheres adultas, elas têm origem bem definida – provenientes de países subdesenvolvidos, ou do espaço rural, ou das periferias empobrecidas –, tal como têm, frequentemente, seus destinos traçados – a exploração, a ilegalidade e a devolução à origem.

Trata-se, assim, de sucessivas práticas seletivas, discriminatórias e de exclusão explícita, quando se trata de olhar a mulher migrante, mas os homens inseridos, muitas vezes, nos mesmos fluxos migratórios são rotulados como sujeitos ativos, fortes, aventureiros e empreendedores, ainda que sobre eles recaiam, por outros (ou idênticos) motivos, outras (ou as mesmas) práticas de discriminação e exclusão. 

A12 - O que é necessário para que as mulheres não caiam nessa armadilha?

Tania Laky - As condições de pobreza sistêmica, de carência de acesso aos meios de sobrevivência econômica (emprego estável e remuneração justa), carência de ambiente de vida qualificado (habitação digna, infraestrutura adequada, educação, saúde), mas, também, os mecanismos exclusão por motivos, de classe, raça, etnia e religião, são os fatores que formam o quadro social e econômico que leva as mulheres a tornarem-se vítimas, antes mesmo de serem vítimas do tráfico de pessoas.

trafico_humano_1Tudo isto gera fragilidade individual, ou vulnerabilidade, onde a pessoa deixa de ter “âncoras” sólidas que lhe permita superar o “abandono” a que se vê votada. Assim, qualquer aliciamento, qualquer promessa, é uma esperança, um sonho realizado, uma possibilidade de fugir daquela angustia cotidiana e tentar um caminho de reencontro com sociedade a partir da garantia dos meios meramente materiais – o dinheiro.

O tráfico humano vive disso. Ele usa, precisamente, aquilo que a sociedade de consumo define como critério de inclusão – dinheiro. O aliciamento, o recrutamento na sua generalidade, não oferece melhor educação, melhor sistema de saúde, ou acesso à cultura. Apenas alicia com dinheiro: com aquilo que determina o status e a sobrevivência do sujeito no sistema.

Impedir que as mulheres sejam aliciadas, que não caiam nessa armadilha, passa, necessariamente, pela implementação de campanhas de informação sobre os riscos a que as mulheres estão sujeitas, sobretudo aquelas que se encontram, precisamente, nessas condições de vulnerabilidade.

Mas a mera informação, ou conscientização não elimina a vulnerabilidade. Ela persistirá enquanto se mantiverem as precárias condições de existência; enquanto as pessoas não vislumbrarem um horizonte de sobrevivência seguro, possível, estável.

Assim, o sucesso do enfrentamento ao tráfico humano passa por articular Prevenção, Punição e Proteção. Reformas estruturais das políticas sociais e econômicas, programas de informação, mecanismos legislativos, policiais e judiciais adequados e articulados, cooperação internacional, e proteção (apoio) às vítimas e potenciais vítimas.

Nada funciona se não fizermos tudo isso ao mesmo tempo. Não adianta reprimir (perseguir e condenar os traficantes), se prevalecerem as situações sistêmicas de pobreza, a exclusão e a desigualdade.

Como, também, não adianta pensar nelas se a sociedade não se apropriar dos valores da dignidade humana, e, assim, denunciar as situações que certamente conhece e que ocorrem, muitas vezes, na casa vizinha. Tudo isso não se completa sem uma efetiva assistência às vítimas, que após o seu resgate devem ver asseguradas as condições necessárias (psicológicas, econômicas e sociais) para que volte a ser aliciada, ou tentada a inserir-se em novo ciclo de exploração. 

A12 - Como a Campanha da Fraternidade pode influenciar a redução destas práticas criminosas?​

Trafico SexualTania Laky - O papel dessas instituições é relevante no processo de enfrentamento, nomeadamente o da Família, da Escola, e da Igreja.

Elas são as que mais perto estão dos grupos sociais. E devem, portanto, aproximar-se, ainda mais, dos referidos grupos e sujeitos vulneráveis enquanto entidades de apoio.

Mas, também, tem um papel importante junto dos outros grupos sociais e organizações políticas, pois estas, frequentemente, agem como se o tráfico humano não existisse, que ele gera vítimas, que explora violentamente outros seres humanos e lhes rouba, por vezes definitivamente, a dignidade humana.

A Campanha da Fraternidade, com o mote “É para a liberdade que Cristo nos libertou”, traz para o debate, precisamente, o respeito pela dignidade humana, alertando para as práticas sociais que limitam o acesso à liberdade pelos indivíduos, e, que muitas vezes, elas passam por atos cotidianos que oprimem, que aprisionam, o nosso semelhante. 

A12 - Quais ações de combate são eficazes em nosso país?

Tania Laky - As ações de combate mais estruturadas no Brasil resumem-se ao enfrentamento do tráfico humano à investigação das redes de aliciamento e transporte de pessoas, entendendo-as, apenas, como organizações ilegais, articuladas, ou não, com o crime organizado. Neste caso, diríamos que os dispositivos jurídicos, judiciais, e penais – o mesmo é dizer, uma política de controle repressivo – são adequados. Nesta perspectiva, o Brasil segue o esforço de articulação, harmonização e cooperação entre os sistemas jurídicos dos diversos países, conforme recomendação do Protocolo de Palermo (2000), com o objetivo de não deixar espaços abertos à impunidade para a prática desses crimes contra a dignidade humana.

No entanto, combater o tráfico humano de forma efetiva requer, necessariamente, que o conheçamos, e reconheçamos, na sua complexidade para, assim, poder estabelecer planos, programas, dispositivos e instrumentos adequados.

O que deverá nortear esse combate são os valores cívicos reivindicados lá na revolução americana e revolução francesa e que se consolidaram nos tratados sobre os Direitos Humanos já no século XX. Não reivindicar e lutar por esses valores – os valores inerentes à dignidade humana; éticos, sociais, religiosos, políticos – é uma oportunidade para que sejam esquecidos e logo alienados por outros que, em regra, os subvertem. 

 

Fontes:

:. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime  (UNODC)

:. Texto-base da Campanha da Fraternidade 2014

:. Observatório de Segurança Pública do Estado de São Paulo

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