Por Edicarlos Edésio Em Jornal Santuário

A tragédia que arrancou raízes

Mariana_um ano depois_Luiz Fernando Batista

Rua Cônego Marcial Muzzi, nº 05, Dom Oscar de Oliveira, Mariana (MG). Esse é o novo endereço do aposentado Ailton Barbosa dos Santos, 63 anos, onde mora com os familiares em um prédio de dois andares, cercado por grades. Perto dali, edifícios com as mesmas características abrigam outras famílias de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, devastado pelo rompimento da barragem de Fundão, que causou a morte de 19 vítimas. A pequena rua, contudo, não foi capaz de concentrar nem 5% dos quase 700 habitantes, que integravam o povoado mais atingido pela maior tragédia ambiental da história do Brasil, ocorrida em 05 de novembro de 2015. Os moradores do antigo Bento, que ficava a dois km da represa, foram espalhados pelo município e dividem a mesma realidade de outras 103 famílias de Paracatu de Baixo, outro subdistrito da cidade.

Os 41 anos vividos em Bento Rodrigues deram a Ailton Barbosa oito filhos e hábitos de vida bem distantes da nova realidade em Mariana. A dificuldade de adaptação é visível ao notar entre as grades do prédio folhas de couve. Elas chamam a atenção para outras hortaliças no pequeno espaço na entrada do edifício. “Aqui a gente tem que ficar com o portão fechado, lá [ Bento Rodrigues] era tudo aberto. Você chegava na cozinha, saia na porta da sala. Chegava na porta da sala, saia na porta da cozinha. Então, esta horta me alegra muito. No eu olhar pra ela, meu pensamento já muda”, desabafa, enquanto colhe tomates e aponta o dedo para um novo canteiro que ele também plantou no outro lado da rua.

A algumas esquinas dali, na Cônego Vicente, o também aposentado Osvaldo Apolinário de Almeida, 73 anos, se depara com um horizonte bem diferente do que estava acostumado. Da sacada do prédio, onde foi instalado pela Samarco, empresa responsável pela barragem, ele não mais visualiza os três pés de manga, 18 de mexericas pokan, além de outras frutas e hortaliças, que dividiam espaço com as 50 cabeças de frangos e galinhas. Uma conta que ele faz questão de fazer. Em meio à saudade resta o violão, que foi resgatado intacto. O mesmo utilizado para dedilhar músicas junto aos amigos de Bento Rodrigues, onde viveu por 46 anos, tendo quatro filhos e nove netos. Apesar das perdas ele mantém a esperança e já sonha com o novo subdistrito, que será construído pela mineradora, juntamente com as controladoras Vale e BHP Billiton. “A primeira coisa que eu vou fazer é agradecer a Deus, dentro da minha casa. Depois vou pegar a foice, roçar o quintal e comprar mudas de manga e mexerica. Vou comprar mudas porque crescem mais rápido. Como já estou de idade se eu plantar sementes pode ser que eu não veja as plantas crescerem”, conta.

É na rua Pernambuco, no bairro Colina, que Marinalva dos Santos Salgado, 44 anos, manuseia as pimentas biquinho. O estoque foi herdado do solo fértil do antigo lugarejo, submergido pela lama. Integrante da Associação de Hortifrutigranjeiros de Bento Rodrigues, ela e mais duas sócias continuam a produzir a famosa geleia de limão, laranja e pimenta biquinho. Os novos potes do produto ainda têm o sabor da colheita em Bento, mas, devem se esgotar em breve.

Dona Marinalva também não consegue se desligar das lembranças da casa que ela havia acabado de construir, seis meses antes da tragédia, e que hoje resume-se apenas a um pedaço de parede. “Sempre vou lá. Mas volto arrasada”, diz, demonstrando questionamento no olhar. “Eu vivo naquela incerteza: será que vou ter o lugar com os meus filhos de novo? Do jeito que eu lutei? Então eu tenho desânimo. Não penso mais no futuro”, completa.

Entre as ladeiras de Mariana, na rua Lucy de Morais, no bairro Santana, uma criança de seis anos brinca no pequeno terreiro de frente a uma casa grande e toda mobiliada, alugada pela Samarco. João Pedro Alves de Souza, que precisou de acompanhamento psicológico para superar o trauma da tragédia, tenta curtir o espaço, que até o início de setembro, lhe faltava em outro imóvel, também mantido pela mineradora. Lá dentro, os avós maternos, Maria Lúcia Silva Alves, 60 anos, e Antônio Alves, 70, também parecem mais aliviados com o novo local que tem ao fundo um pequeno quintal. A alegria da mudança se estende a auxiliar de serviços gerais e cabeleireira, Paula Geralda Alves, 37anos, mãe do menino brincalhão. Mesmo grata com a assistência que tem recebido por parte dos responsáveis pela tragédia, o sentimento da perda é inevitável. “Eu morro de saudade do meu quarto. Ele era todo novo e é onde eu dormia com o meu filho. No meu quarto eu tinha paz. Eu tenho saudade porque aquilo lá eu tinha comprado com o meu suor, com o meu trabalho”, lembra.

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Foi numa motocicleta velha, quitada com o suor das faxinas e o talento nos penteados, que Paula avisou parte da população de Bento Rodrigues sobre o rompimento da barragem. A buzina foi a sirene, até então inexistente no lugarejo, e que agora passou a integrar os planos de segurança da Samarco. Passado quase um ano da tragédia, os dias vividos em Mariana ainda não foram suficientes para a cabeleireira se acostumar com a nova realidade. “A nossa história não acabou no dia 05 de novembro. Ela foi interrompida, mas vai continuar com a nova comunidade. A nossa vida é outra. Nós gostamos do sossego”, afirma.  

Essas pessoas, hoje em endereços bem distintos, só voltarão a ser vizinhos em 2019, data prevista para a Samarco entregar o novo Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, como acordado com os governos federal, de Minas Gerais e Espírito Santo, onde a lama também deixou rastros. Enquanto isso, a igreja de Santa Cruz, no bairro Barro Preto, tornou-se o ponto de encontro de parte desses moradores. Todos os meses, sempre nos últimos domingos, eles participam de celebrações eucarísticas realizadas especialmente para o grupo. A Igreja tem sido o berço que mantém vivo o espírito de comunidade, ainda forte entre os atingidos. “Às vezes eles passam o mês inteirinho sem se verem. E essa é a única oportunidade de matarem a saudade um do outro. Mas todos trazem sempre esta carga da perda que tiveram com a destruição de Bento”, relata o padre Armando Godinho, da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, de Catas Altas, município vizinho de Mariana. Responsável pela comunidade do antigo Bento, ele manteve as celebrações junto aos moradores.

O pároco, que demonstra nas lágrimas o sofrimento ao lembrar a tragédia, conta que o apoio religioso tem sido indispensável para os atingidos. “A maioria está sofrendo. Alguns estão adoecendo. A doença é a depressão, a angústia. E até mesmo a incerteza de que eles vão poder voltar para um lugar realmente deles”, desabafa. É por meio das festas e celebrações religiosas, que a Igreja católica tem trabalhado para manter as referências peculiares da população de Bento e Paracatu. Contudo, o padre relata preocupação com o novo modo de vida imposto aos moradores das comunidades afetadas.   “Se eles tentarem adaptar-se a cidade grande, eu vejo que corre o risco de não desejarem outra realidade: de voltar para a origem simples, humilde da área rural. Então a gente sempre tenta orientá-los para que eles não desistam nunca. E lutem sempre em comunhão”, completa.

A Arquidiocese de Mariana, que compreende 78 municípios, tem tido uma participação direta no apoio às famílias atingidas. O trabalho é realizado em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que está na região de Mariana desde 1995, e passou a contar com o apoio da Arquidiocese em 2001. À frente da coordenação do MAB MG, Letícia Oliveira, 28 anos, afirma que o auxílio da Igreja tem ajudado no levantamento de pautas , debates e, sobretudo, na luta por direitos que ainda não foram atendidos. “No município do Rio Doce, por exemplo, 80 garimpeiros e pescadores, que tiravam o sustento do garimpo e da pesca não receberam nada da Samarco até hoje”, alerta. A denúncia é confirmada pelo Ministério Público de Minas Gerais, que 10 meses depois do rompimento da barragem, precisou entrar com uma ação de cumprimento de sentença contra a empresa. De acordo com informações coletadas na Comarca de Mariana, 105 famílias, do próprio município, da área do Foz do Rio Doce, Governador Valadares e Aimorés, ainda não tinham recebido o auxílio financeiro mensal e a antecipação de indenização.

Em nota, a Samarco afirma que tem reparado os danos com a tragédia por meio de 41 programas socioambientais e socioeconômicos, este último com 100% das ações em andamento. A empresa garante ainda estar dando assistência às famílias atingidas, com custeio dos alugueis dos imóveis e o cartão de auxílio subsistência, que contempla o pagamento mensal de um salário mínimo para cada família, mais um adicional de 20% a cada um dos dependentes, além do valor da cesta básica do DIEESE. Ainda segundo a mineradora, a empresa tem mantido diálogo com as comunidades de Bento, Paracatu e Gesteira, distrito de Barra Longa, que também terá o povoado reconstruído. Os próprios moradores escolheram, por meio de votação, os locais das construções, que estão em fase de estudos. A previsão de início das obras é em 2017.

Embora os direitos estejam sendo garantidos à maioria dos atingidos, devido a forte atuação do Ministério Público, Letícia Oliveira alerta para as consequências que a tragédia ainda pode provocar. “Ficar em Mariana três, quatro anos é um impacto. E ir para uma nova comunidade onde os moradores não ajudaram a construir nada, também. Não vai ser o Bento como era antes, um Paracatu como era antes. Vão ser outras relações que serão reestabelecidas”, finaliza a coordenadora do MAB MG.

 

“Justiça sim, desemprego não”

Até 05 de novembro de 2015 Mariana vivia a situação de pleno emprego. Desde então, o município, que atualmente tem quase 60 mil habitantes, segundo a última estimativa do IBGE, viu a taxa de desocupados chegar a 22 % da população economicamente ativa. Com a paralisação das atividades da Samarco, que ainda aguarda licenças para voltar a minerar, a prefeitura de Mariana teve perda de 40% na receita municipal. A queda na arrecadação impôs cortes no sistema de transporte para o ensino superior fora da cidade, alterações no serviço de limpeza urbana, além da redução nos postos de trabalho em diferentes setores administrativos.

O chefe de gabinete, Israel Quirino, 54 anos, admite que a diversificação econômica da cidade nunca esteve entre as prioridades das gestões do município, onde a mineração existe há 300 anos. Segundo ele, um projeto com propostas de novo horizonte para a economia local estava em andamento bem na época da tragédia. “Mariana tem alguns pontos de solução. Agricultura é um deles. Turismo é outro. E isso já estávamos trabalhando, agora incrementado com mais prioridades. Não deixando de lado a mineração, não tem como substituir a mineração,” defende, ao explicar que a cidade não tem porte suficiente para viver só do turismo. “Nós temos uma população ansiosa por emprego. Queremos que a mineradora volte, mas com segurança”, ressalta.

Na defesa dos direitos humanos dos atingidos, o promotor de justiça da Comarca de Mariana, Guilherme de Sá Meneguim, 33 anos, tem acompanhado de perto o drama das famílias, que agora integram a zona urbana afetada pelo desemprego. O promotor critica a relação de dependência da prefeitura com as empresas de mineração. “A questão é que não houve uma diversificação da economia em Mariana. Isso acabou vinculando grande parte dos empregos diretamente à Samarco ou empresas terceirizadas, tornando-se um problema que deve ser tratado pelo poder público”, alerta. Ainda segundo ele, as relações comerciais têm prejudicado a agilidade no processo em defesa das vítimas da tragédia. “Eu não vejo por parte do poder público uma iniciativa clara, objetiva, de querer, de fato, garantir os direitos dos atingidos. O que eu vejo é um discurso que muitas vezes não corresponde à realidade”, sustenta.

Três meses antes do rompimento da barragem de Fundão, o padre Geraldo Barbosa chegava a Mariana, onde passaria a integrar a Paróquia do Sagrado Coração de Jesus. Ele viu a casa onde mora ser transformada em abrigo para parte dos atingidos. “A preocupação é   com aquilo que o papa Francisco chamou atenção. Desse sistema insuportável, neoliberal, neodesenvolvimentista, que exclui, degrada e mata”, destaca. Passada a etapa de socorro às centenas de famílias, o pároco teme pelo futuro da cidade. “ Não se trata simplesmente de não se esquecer, mas da gente repensar um novo modelo de organização econômica e que o lucro não seja a visão principal”, reforça.

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