Por Pe. José Carlos Pereira Em Artigos

O esquecimento

"A morte mesmo é o esquecimento: enquanto eu abrir as portas do sonho para ele entrar, meu amigo continuará existindo" (Martha Medeiros). Bela e verdadeira essa expressão de Martha Medeiros. As pessoas só morrem quando nós as esquecemos; quando elas não aparecerem mais nem nos nossos sonhos. Enquanto existir na nossa lembrança, ou nos nossos sonhos, um fio da presença daquela pessoa, ele não morreu para nós. Por essa razão, não é a morte que nós tememos, mas o esquecimento. Lembrar-se dos amigos, dos parentes e dos familiares, mesmo que seja apenas vez por outra, nos dá a certeza da sua existência. O dia em que esquecermos definitivamente de alguém, ou formos esquecidos, aquele alguém morreu para nós e nós morremos para aqueles que nos esqueceram.

É compreensível porque muitas pessoas vão ao cemitério no dia de finados e levam flores. Elas estão dizendo com esse gesto que não esqueceram os seus entes queridos. Ou então, por que guardamos fotos, cartas, objetos de pessoas que passaram pela nossa vida? É que de alguma forma elas continuam existindo, mesmo que não estejam por perto, ou que não estejam mais fisicamente nesse mundo. Cada vez que vemos algo de uma pessoa que passou pela nossa vida, ou alguma coisa relacionada a ela, ela revive na nossa lembrança e por isso continua a existir de alguma forma. Às vezes essa lembrança é motivada por uma música, um perfume, uma comida, ou mesmo um lugar. Tudo isso são fatores que despertam a lembrança e trazem de volta aquela pessoa. Se o esquecimento é a morte, a lembrança é a vida. Quando alguém nos dá um presente, por mais simples, esse alguém nos está dando uma lembrança. E é bem essa a expressão: “é só uma lembrança”, diz a pessoa ao dar um presente. Só uma lembrança? Dizemos, ou ouvimos isso como se fosse pouco. Lembrar-se de alguém não é pouco. É tudo, é a vida. Quando alguém nos dá uma lembrança, esse alguém está pedindo para não ser esquecido, está pedindo para viver. É um clamor para que não a matemos em nós, pois se a esquecermos, ela deixa de existir.

Procuro lembrar sempre dos amigos e de pessoas que de certa forma cruzaram um dia o meu caminho, a minha vida, mesmo que eu não tenha mais nenhum tipo de contato com ela, a não ser na lembrança; mesmo que não troquemos cartas, e-mails, telefonemas, mensagens ou sinal de vida. De alguma forma estou em sintonia com ela pela lembrança, mesmo que essa lembrança surja esporadicamente, ou só da minha parte. Uns mais, outros menos, mas sempre, de alguma forma, muitas pessoas são revividas na nossa lembrança. Quando nós nos lembramos de alguém, essa pessoa passa a ocupar um espaço reservado somente para ela e ela se torna única, exclusiva e eterna enquanto durar a lembrança.

Nada é pior que o esquecimento, pois todo esquecimento é uma forma de morte. Paradoxalmente falando, as pessoas que sofrem do mal de Alzheimer vivem uma espécie de morte. Elas não se lembram de pessoas íntimas, de familiares e de amigos próximos. Às vezes não se lembram de filhos, de irmãos, de esposo ou esposa, e isso é muito doloroso. É doloroso para quem não se lembra, porque vive uma espécie de exílio dentro da própria casa, com “estranhos”, e é doloroso para quem convive com a pessoa portadora dessa doença, porque a reconhece, mas não é reconhecido por ela. A pessoa sem lembrança quer ir para casa, mesmo estando dentro dela; quer ver os filhos, mesmo estando com eles a sua volta. Os que estão a sua volta sofrem a dor do esquecimento.

Enfim, ninguém quer ser esquecido. Tudo o que somos e fazemos consiste numa luta incansável para ser visto, reconhecido, lembrado. A eternidade é a lembrança. Enquanto existir lembrança, a pessoa existe. Quando se apagam as lembranças, aqueles, cujas lembranças foram apagadas, morreram para os que deles não se lembram. Sendo o esquecimento algo doloroso, é mais doloroso ainda quando somos esquecidos pelas pessoas que amamos, por aquelas que na nossa vida têm algum valor. Chico Buarque diz que “a saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento”. Não concordo! A saudade pode ser um tormento, mas ela não é pior do que o esquecimento. A saudade é a dor dos que estão vivos, dos que existem, dos que são lembrados. O esquecimento é a dor dos mortos, dos que não existem mais, dos que se apagaram de alguma forma e essa é a pior dor.

Padre José Carlos Pereira, CP é sociólogo e escritor de mais de 50 livros

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Pe, José Carlos Pereira
Pe. José Carlos Pereira

Sociólogo e escritor de mais de 50 livros

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