São vários os paradoxos que evidenciam o abismo entre as garantias constitucionais e legislações que tratam da implementação da política de segurança: o Código de Processo Penal, de 1941, por exemplo, mantém em sua base toda uma estrutura inquisitorial, caracterizada pela persecução criminal. Ou seja, temos uma Constituição que amplia e, no plano formal. consolida direitos e uma legislação penal ainda baseada na criminalização (dos pobres) e na contenção social. Isso pode explicar, no âmbito jurídico, as razões da manutenção dos aspectos inquisitoriais e punitivos dos sistemas jurídico e de segurança pública brasileiros, mesmo num contexto democrático.
Para complicar ainda mais o cenário caracterizado pela violência estatal utilizada discricionariamente na defesa do aparato de um Estado marcadamente patrimonialista, em detrimento da garantia dos direitos individuais, a partir da década de 1980 um processo de ampla deterioração das condições de vida nas cidades – ocasionado também pelo vertiginoso aumento da criminalidade violenta – passou a fragilizar as condições de vida nos grandes centros urbanos e a limitar ainda mais os direitos dos cidadãos, principalmente dos segmentos mais pobres.
O relatório divulgado pela Anistia Internacional, há poucos dias, mostra que o ano de 2014 foi marcado pelo agravamento da crise da segurança pública no Brasil. O aumento dos homicídios no país; a alta letalidade nas operações policiais; o uso excessivo da força no policiamento dos protestos que antecederam a Copa do Mundo; as rebeliões com mortes violentas em presídios superlotados e casos de tortura mostram que a segurança pública no país precisa de atenção especial por parte das autoridades brasileiras. A militarização da segurança pública – com uso excessivo da força e a lógica do confronto com o inimigo, em especial nos territórios periféricos e favelas – tem contribuído, segundo a Anistia, para a manutenção do alto índice de violência letal no país.
Dados produzidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, relativos a 2013, confirmam que as polícias do Brasil matam seis vezes mais que os policiais norte-americanos, por exemplo. Em cinco anos policiais brasileiros mataram mais de 11 mil pessoas, enquanto que nos Estados Unidos, uma marca semelhante só foi atingida em 30 anos. O Fórum concluiu que a violência gerou um custo aos cofres públicos de R$ 258 bilhões – cerca de 5% do Produto Interno Bruto do país. Os gastos incluem despesas governamentais com segurança pública, sistema carcerário, atendimento de saúde às vítimas, além da contratação de segurança privada e seguros. Novo paradoxo: o incremento da segurança privada se consolida com a deterioração da segurança pública.
Política de segurança pública: remendos novos em panos velhos
Observamos que as alterações processadas desde a redemocratização na política de segurança pública são arranjos incrementais que não alteraram substancialmente essa política. Tais modificações são “remendos novos em panos velhos”.
Os dilemas da política de segurança pública brasileira persistem e são complexos: há problemas federativos (papéis dos entes federados na elaboração, implementação e execução das políticas; cooperação entre as esferas de governo etc.), evidentes conflitos organizacionais (disputa entre as várias agências do sistema por espaços de poder e definição das políticas), questões institucionais (papel das instituições nos arranjos do sistema), paradoxos legislativos (conflito entre legislações nos três níveis de governo), além dos péssimos indicadores de crimes. Isso sem desconsiderar, claro, a “trajetória de dependência” da política de segurança, ancorada em boa medida nas concepções de defesa nacional e defesa interna, criadas durante a Ditadura Militar.
O resultado da falta de governança na segurança pública tanto no plano federal quanto nos estados pode ser assim sintetizado: (a) instituições policiais não conseguem superar os modelos tradicionais tanto de policiamento ostensivo, quanto de policia judiciária – o que pode explicar, em parte, os óbices para uma efetiva integração policial; (b) sistema prisional fundado na contenção dos detentos, com poucas condições objetivas de reinserção social dos presos; (c) política de enfrentamento das drogas é insuficiente, desarticulada e não responde à complexidade do tema; (d) Defensorias Públicas com ação limitadíssima pelo escasso número de servidores e alcance de suas ações; (e) baixa eficiência dos mecanismos efetivos e autônomos de controle externo das ações policiais; (f) falta de transparência dos dados de segurança pública; (g) ausência de participação social nos mecanismos de gestão e controle da política de segurança. Isso sem contar a ineficiência do sistema de Justiça nessa área.
Portanto, defender um modelo de segurança pública como política basilar à cidadania significa pensar num sistema político-institucional indispensável na conformação de uma sociedade democrática. Afinal, num país que se diz democrático, não é possível aceitar que a violência institucional, a tortura, o desrespeito a elementares direitos de cidadania, a seletividade do sistema de justiça criminal, o elevadíssimo grau de letalidade da ação policial, entre outros, não sejam encarados como problema civilizatório.
Robson Sávio Reis Souza é filósofo e cientista social
Boleto
Carregando ...
Reportar erro!
Comunique-nos sobre qualquer erro de digitação, língua portuguesa, ou de uma informação equivocada que você possa ter encontrado nesta página:
Carregando ...
Os comentários e avaliações são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do site.