Lyette Basset, em seu livro Ousar a benevolência (ainda não traduzido no Brasil), analisa a influência que a teologia cristã do “pecado original” exerceu na cultura ocidental, levando a uma visão negativa da “natureza humana”, considerada essencialmente corrompida e, portanto, precisando ser “salva” de si mesma.
Embora a partir de um vértice completamente diferente, mas evidentemente não isento da influência da cultura judaico-cristã que marcou profundamente o mundo ocidental, Freud, em seu Mal-estar na civilização, mostra que a natureza do psiquismo humano é dominada por instintos que precisaram ser “domados” pelo trabalho civilizatório da cultura, para tornar o convívio humano viável e menos bárbaro.
Essa concepção freudiana foi ainda mais marcada por um viés negativo a partir do momento em que ele frisou ser a “pulsão de morte” uma estrutura básica do aparato instintual humano. Se, por um lado, somos movidos pelo desejo e pela libido, que nos leva em direção ao mundo externo, por outro lado um instinto inverso nos “desvincula” do mundo externo e nos leva a um fechamento narcísico paralisante.
Mas, afinal, podemos “ousar a benevolência” em relação à natureza humana, acreditando que ela pode ser “educada” para tirar dela o que tem de melhor (em sentido humanista cristão a sua “imagem e semelhança” com Deus)?
Nos tempos atuais, marcados por diferentes formas de barbárie, envolvendo corrupção, violência e devastação ambiental, fica difícil olhar com benevolência e otimismo para a natureza humana. O seriado americano The Walking Dead aborda essa questão ao imaginar a sobrevivência de um pequeno grupo de humanos em um mundo apocalíptico, devastado por seres que deixaram de ser humanos, transformando-se em canibais sem alma.
A metáfora não é, afinal de contas, tão exagerada. Não estaríamos de fato assistindo ao avançar de uma praga que pode transformar o ser humano em um zumbi, desprovido de alma e devorador?
O seriado desenvolve-se, em grande parte, na luta pela sobrevivência do pequeno grupo que procura descobrir o que é essencial à preservação da natureza humana.
Não se trata apenas de sua sobrevivência física, mas também da sobrevivência de algum tipo de integridade psíquica e ética em um mundo onde já não há instituições capazes de garanti-la e salvaguardá-la.
Talvez não estejamos muito longe disso.
Roberto Girola é psicanalista e terapeuta familiar
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