Lamento não ter conseguido perguntar o nome dela. Era um sábado, 2 de agosto de 2014, por volta das 14h30, sob o sol escaldante, caminhei até uma mercearia, sentia sede. Agachei-me para pegar a garrafa de água, quando levantei, um sorriso tímido passou por mim. Pés descalços, ela vestia uma bermuda azul e uma blusa branca. Sua mão miúda segurava, no punhado, um pacotinho de feijão-de-corda, não mais que 200 gramas. Na outra mão segurava firme o dinheiro todo amassado.
Foto de: Paulo Maia / Intervenção gráfica: Rebeca Venturini
Ela foi até o balcão de frios e pediu um pedaço de mortadela, 300 gramas. Franzina, o porte físico parecia de uma criança de cinco anos, mas pela desenvoltura tinha uns 7. Ao passar no caixa, sobrou dinheiro. Olhou o troco na palma da mão. Voltou e comprou mais um pedacinho de mortadela. E disse à moça: “É para fazer o almoço de hoje”. Segui a criança com o olhar. Ela acenou, disse tchau, e saiu. Seus pés escolhiam onde pisar na rua cascalhada, sob o sol muito quente. Aquela imagem continua caminhando em minhas lembranças.
Próximo ao caixa, uma mãe com um bebê de colo, disse ao menino maior: “Não, meu filho, não vamos poder levar o caderno, custa R$ 7,90! Nós só temos R$ 6 Reais”. Ele olhou triste para a mãe e devolveu o caderno na prateleira. A mãe prosseguiu: “Eu sei que de novo você não vai querer ir à escola na próxima semana por vergonha de não ter o caderno, mas vamos ter de esperar”.
Estamos em Melgaço no Arquipélago do Marajó (PA). A cidade está localizada a 290 quilômetros em linha reta de Belém (PA). No entanto, o acesso é somente fluvial ou aéreo. Partindo da capital, a viagem é de aproximadamente 30 minutos de helicóptero, 8 horas de lancha ou 16 horas de barco, este último é o transporte mais usado pela população, que, segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, era de 24.808 habitantes no município.
Pela manhã, havíamos percorrido o Rio Tajapuru por cerca de quatro horas, para apurar a denúncia de exploração sexual contra crianças e adolescentes nas balsas que fazem o trajeto de Manaus (AM). As adolescentes entram nas balsas com o pretexto de vender açaí. “Elas levam frutas, sobretudo o açaí, vendem ou trocam por óleo. Atracam o casquinho (pequena embarcação movida a remo) na balsa e seguem viagem até encontrar uma embarcação que venha em sentido contrário, aí retornam para casa”, conta Mirian*, professora de uma comunidade às margens do Rio Tajapuru.
Logo na primeira balsa carreteira que a equipe encontrou, havia três adolescentes que rapidamente entraram no convés e ficaram a espiar os passageiros. As balsas são utilizadas para o transporte de diversos tipos de mercadorias. A tripulação de um empurrador de balsa é formada por um piloto, um mestre, um marinheiro fluvial de convés, um contramestre fluvial, um marinheiro fluvial de máquinas e um cozinheiro. A média de viagem dessas embarcações de Manaus a Belém é de 78 horas, e de Belém a Manaus, 115 horas.
A céu aberto
Foto de: Paulo Maia / Intervenção gráfica: Rebeca Venturini
“É Tajapuru abaixo, Tajapuru acima. Eu estou cansado, sei do risco que estou correndo, mas prefiro morrer na defesa dessas crianças e adolescentes do que passar a vergonha que há anos estou passando, de consentir que, na minha cara e na cara de muitos, essas meninas sejam prostituídas, sejam compradas, vendidas como coisas”, desabafou dom José Luís Azcona Hermoso, bispo do Marajó e acompanhante da Comissão Justiça e Paz (CJP), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Regional Norte 2 (Pará e Amapá), que sofre ameaça de morte, devido ao trabalho de combate e denúncia contra a exploração e o abuso sexual de crianças e adolescentes na região, bem como o tráfico humano e as violações dos direitos humanos.
“O Marajó é abandonado, terra sem lei. Há um total descaso por parte do governo. Por isso, com muita facilidade os aliciadores agem. A falta de políticas públicas faz com que nossas crianças e adolescentes se submetam a tamanha humilhação, colocando o corpo, que ainda está em desenvolvimento, para ser explorado. Precisamos dar visibilidade a essa situação, para que medidas sejam tomadas”, desabafa irmã Henriqueta Cavalcante. Secretária-executiva da CJP, da CNBB, Regional Norte 2, e também ameaçada de morte, ela responde por vários processos na Justiça, pela sua atuação enfática na defesa dos direitos humanos, em especial na denúncia e no combate contra a exploração sexual de crianças e adolescentes no Pará.
“Todo mundo da comunidade sabia, mas ninguém tinha coragem de fazer a denúncia, por medo de que o Conselho Tutelar não tomasse as devidas providências, e a polícia não acreditasse na gente. Mas ela vivia se escondendo, parece que tinha medo de gente. Nos últimos dias tinha até dificuldade de caminhar”, relata Isaías*, morador de uma comunidade às margens do Rio Anapu. Essa menina, tem 12 anos, mora com a mãe e a irmã de 8. Ela é vítima de abuso e exploração sexual. O crime acontecia cerca de um ano atrás. Freitas*, de 70 anos, e Silva*, 78, são acusados de violentar sexualmente a menina.
Segundo apurações da Polícia Civil, os dois levavam a criança de Melgaço para a cidade de Portel, no Marajó, e sempre que iam receber suas aposentadorias, no percurso, também abusavam sexualmente dela. As investigações mostraram que os idosos doavam alimentos e faziam favores à família da menina, em especial, à mãe. A mãe foi indiciada em inquérito policial pela conivência, e Freitas e Silva estão presos.
Foto de: Paulo Maia
Para o procurador da república do Pará, Felício Pontes Júnior,
a impunidade é um dos fatores decisivos para que crimes
continuem acontecendo
Os pesquisadores Marcel Hazeu e Simone Fonseca, no artigo, “Exploração e violência sexual contra crianças e adolescentes no Pará”, apontam que: “O poder quase absoluto que um homem adulto exerce sobre uma criança, o prazer de dominar e possuir alguém no que tem de mais íntimo: sua vida sexual, leva-nos a acreditar que os motivos da violência sexual ultrapassam o prazer sexual, para se constituir como forma de abuso de poder. Isso poderia explicar também a predominância masculina entre os agressores, principalmente na conjuntura atual, na qual sua superioridade está sendo questionada, tanto no mercado de trabalho quanto em casa, e contra a qual esses estão resistindo numa forma violenta”.
Pinheiro*, de 46 anos, foi preso após denúncia ao Conselho Tutelar. Na denúncia, Pinheiro estaria abusando sexualmente de três meninas de 8 anos de idade. As vítimas relataram em depoimento os detalhes do abuso sofrido, que era sempre acompanhado de ameaças. Segundo o delegado Rodrigo Amorim, titular da Delegacia de Melgaço, as três crianças foram encaminhadas para exame médico em que foi constatado o crime. O agressor teve a prisão preventiva decretada. Essa é a quinta prisão de envolvimento com abuso sexual no município em menos de 30 dias. E, em três meses de atuação do delegado na região, foram realizados 19 procedimentos, todos de casos envolvendo exploração sexual contra crianças e adolescentes.
Fatos indicadores
Para Felício Pontes Jr., procurador da República junto ao Ministério Público Federal do Pará, a exploração sexual na região é uma das consequências de um modelo econômico predatório iniciado na década de 1970, quando a Amazônia foi palco do mais ambicioso projeto de colonização agrária da história do Brasil República. O projeto teve por finalidade atrair trabalhadores do Nordeste e do Centro-Oeste. O procurador lembra o slogan: “Amazônia, terras sem homens, para homens sem terra” e enfatiza que esse mesmo modelo continua com atuais projetos de desenvolvimento para a região.
Segundo Pontes, esses projetos não contemplam os povos amazônidas, porque não seguem um modelo econômico socioambiental a partir da visão dos povos da floresta. E ressalta que não se pode chamar de desenvolvimento, algo que, em nome do progresso, sacrifica grupos sociais minoritários. “É sempre uma visão colonizadora, uma visão de fora para dentro da Amazônia, dizendo como a Amazônia deve se desenvolver.” E associa: “Hoje, quando vemos a exploração e o abuso sexual contra crianças e adolescentes nas cidades ribeirinhas ou até o trabalho escravo, constatamos que isso é uma consequência desse modelo predatório”. E diz que esses grupos acabam ficando invisíveis, e essa invisibilidade os torna vulneráveis. “É preciso dar visibilidade a essas populações e mostrar que há alternativas econômicas viáveis e bem mais lucrativas, inclusive para o Brasil, do que a exploração econômica predatória”, adverte o procurador.
“A migração trouxe uma cultura de fronteira, na qual normas e regras não existem ou são negadas. E a população? Colabora, aproveita-se, submete-se ou prefere ficar calada. São poucas, ainda, as pessoas que se manifestam, e estas poucas se concentram, muitas vezes, nos conselhos tutelares ou nos grupos populares. E o Estado? Continua respondendo aos problemas sociais com políticas de repressão, sem considerar a necessidade de outras intervenções de prevenção, mobilização e atendimento. Quando o Estado formulou uma política integrada de combate à exploração e à violência sexual de crianças e adolescentes? Deve-se reconhecer que este problema não é acidental, mas sim estrutural, e tem de ser tratado como tal”, recomendam Marcel Hazeu e Simone Fonseca.
Foto de: Paulo Maia
Dom José Luis Azcona, bispo do Marajó, é ameaçado
de morte devido ao combate contra crimes de
exploração sexual
Para dom Azcona, o ponto nevrálgico está na perda da dignidade humana, que é generalizada. “Uma sociedade incapaz de defender o que de mais precioso tem, que são as crianças e os adolescentes, é o fim. É a total degradação ética e moral”, afirma, e lembra, com os olhos marejados, dois casos de mães que venderam as filhas. Uma levava a menina de 8 anos para ser explorada e abusada sexualmente no Rio Tajapuru e foi flagrada recebendo em troca 2 reais e 40 centavos e um balde de vísceras bovinas. O outro caso, conta o bispo, aconteceu em Portel, cidade próxima de Melgaço, onde uma mãe aceitou vender a filha de 17 anos por 500 reais e cobrou quatro cervejas por um programa.
Sem proteção
“A própria família está atrelada ao crime, existe um silêncio. O crime acontece dentro do núcleo familiar, é intrafamiliar. E não existe a cultura de as mães acompanharem as crianças, perceberem que algo está errado com a criança”, observa Débora Eliza Contente, psicóloga do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), em Melgaço. Débora narra o caso de uma menina, de 8 anos, uma das abusadas por Pinheiro. “A criança reclamou à mãe de ‘dor na urina’, a mãe deu remédio, mas não foi olhar o que de fato estava acontecendo. Ela já estava com corrimento”, conta a psicóloga, que se diz impressionada com a riqueza de detalhes como as crianças narram os abusos sofridos.
A psicóloga desabafa a dificuldade em dar efetivamente atenção terapêutica à saúde física e mental das crianças, pois, segundo ela, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social não oferece uma infraestrutura para um trabalho qualificado. “Há uma vítima que preciso acompanhar, mas como, se ela está morando com a avó e, daqui até onde elas moram, são aproximadamente 12 horas de voadeira? Elas não têm condições de vir até o Creas para o acompanhamento, e não existe uma equipe volante para se deslocar e acompanhar esses casos.” A menina tinha sete anos quando ficou órfã da mãe. O pai assumiu a guarda da criança e desde então passou a conviver com a filha maritalmente, por cerca de dois anos, quando foi denunciado. Está preso, foi julgado e condenado.
Há três casos, ainda não denunciados à Justiça: um funcionário público, um professor de uma escola municipal rural ribeirinha e um piloto de lancha escolar, que estão envolvidos no abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes no município de Melgaço. “Nós, a população, temos medo de denunciar, pois somos ameaçados, não temos segurança policial”, relata Ester*, que expôs os fatos à reportagem da Revista Família Cristã.
O delegado Rodrigo Amorim se diz estarrecido com a incidência de casos de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes no município e com o agravante de ser por parte de quem deveria proteger: “Temos em andamento um processo contra um conselheiro tutelar, que está afastado, por abuso sexual contra uma menina de nove anos e por tentativa de violar uma adolescente. E há também um inquérito contra um professor que tentou violentar sexualmente um aluno e assediou outro”.
A injustiça
Foto de: Paulo Maia
Irmã Henriqueta também sofre
constantes ameaças
A filha tinha 12 anos. “A mãe, por passar necessidade financeira, levou a menina para trabalhar na casa de uma professora. A criança começou a ser abusada pelo patrão. Quando passamos a acompanhar o caso e o mesmo foi a julgamento, houve a tentativa de suborno para conosco e tentaram subornar a família também”, revela Karen Emilia Lopes de Holanda Lima, coordenadora do Creas. Quando a menina retornou do depoimento, conta Karen, chegou muito chocada e não queria levar o caso adiante, por se sentir ameaçada.
“O mais triste deste caso foi que, no julgamento, ela foi declarada culpada. O parecer conclusivo foi de que ela seduzia o patrão. O agressor passou a ser vítima, e a vítima tornou-se a agressora. Infelizmente, o dinheiro manda. A família dela continua ameaçada e isso dá uma baixa em nosso trabalho, devido à intimidação, mas o processo foi reaberto”, ressalta Karen.
“O que mais pesa para que isso continue acontecendo é a impunidade. O sistema processual brasileiro é arcaico. A forma como o processo se desenvolve na Justiça faz com que se tenha uma longa espera até que o direito seja reconhecido, e isso acaba favorecendo quem não tem razão”, explica o procurador da República Felício Pontes.
Segundo Pontes, um processo judicial sobre a exploração sexual de criança ou adolescente se torna lento pelo número de incidentes processuais que sofre até chegar à decisão final, e por isso contribui para a impunidade. “Tal impunidade é fator decisivo para que esse tipo de crime continue acontecendo”, afirma o procurador da República.
Esperanças
“Aqui no Marajó há uma grave ‘tradição’ de violentar meninos e meninas como se fosse algo comum. Isso, para mim, é inconcebível, vou me manter firme no combate contra a exploração de crianças e adolescentes”, adverte o delegado Rodrigo Amorim.
Valdemir Ramos, conselheiro tutelar, afirma que o Conselho vem realizando um trabalho de enfrentamento, prevenção e conscientização no combate a esse crime, mas admite que a infraestrutura oferecida pelo município fica aquém das necessidades de atendimento aos casos. E reclama da falta de formação e preparação da equipe para atuar.
“Não posso dizer que nos cansamos de fazer denúncias a esse tipo de crime na região, e que, por vezes, no percurso do processo judicial, o criminoso torna-se vítima e vice-versa. A minha indignação torna-se cada vez maior. Sou resiliente! Mas fico preocupada com o descaso que existe para esse tipo de crime. Eu sei que terei de arcar com todas as consequências, mas tenho de ser aquela ‘gota d’água’. Vai chegar um momento em que ‘a pedra vai furar’. Eu não quero continuar vendo nossas crianças e adolescentes sendo violentados e os criminosos ficando muito à vontade para atuarem e fazerem do corpo dessas vítimas objetos de consumo, mercadoria”, desafia irmã Henriqueta.
Foto de: Paulo Maia / Intervenção gráfica: Rebeca Venturini
“A Igreja tem mostrado um rosto amigo da criança, assumindo o risco de morte e processos judiciais. Mas entramos nessa causa para ficar. Vamos lutar até o fim pela defesa dos direitos deste povo do Marajó, abandonado, massacrado 24 horas por dia. E, se for preciso dar o testemunho entregando a minha vida por causa do Evangelho, estou disposto, sem medo” admite dom Azcona.
A menina do punhado de feijão-de-corda, do pedaço de mortadela e o menino do caderno... e as vítimas exploradas sexualmente... Crianças e adolescentes brasileiros são protegidos por uma série de regras e leis. Devem ser resguardados pela família, a sociedade e o Estado.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069, no caso da infância e adolescência, é a lei mais importante. Considerada um marco na proteção da infância, ela tem como base o princípio de proteção integral, fortificando a ideia de “prioridade absoluta” da Constituição.
* A Revista Família Cristã optou por não publicar o nome dos acusados, bem como das fontes locais e das crianças, para proteger as vítimas
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