Um livro que lança um olhar sobre o universo religioso na América Latina e resgata os fatores históricos sobre a ideia de exclusivismo cristão. Também aborda questões sobre novos horizontes no século XXI, que é portador não só de novos impasses, mas também de grandes avanços no diálogo inter-religioso Deuses em Guerra e Pacto na América Latina Colonial acaba de ser lançado pela Editora Ideias & Letras e o JS bate um papo com a autora da obra, Maria Cecilia Domezi.
Jornal Santuário de Aparecida – O título do livro é bem impactante Deuses em Guerra e Pacto na América Latina Colonial. Partilhe um pouco sobre a escolha desse título?
Foto de: Arquivo Pessoal
"Parece inacreditável, mas ainda
hoje muitas pessoas são vítimas
de fundamentalismo religioso, de
discriminação e guerra de religião,
principalmente fiéis das religiões
afro, como a Umbanda, o Candomblé
e outras. Isso é lamentável. E o
caminho da superação, a meu
ver, está na abertura à
'alteridade' (de alter, outro)"
Maria Cecília Domezi – Sabemos que a história da colonização da América Latina foi marcada pela presença de diferentes religiões, com muitas diferentes concepções da divindade, mas houve imposição do Cristianismo como religião exclusiva e obrigatória, inclusive com violência. Isso me levou ao tema da “guerra de deuses”, que tem estado bastante presente nos estudos de religião e sociedade.
Geralmente se parte do argumento de Max Weber, de que na sociedade moderna há um politeísmo de valores e um conflito contínuo das crenças básicas, ou seja, uma constante luta de deuses. Na Teologia da Libertação também esse é um tema recorrente, com a denúncia de novas idolatrias, como a do deus dinheiro, do deus lucro. Mas minha questão era a seguinte: as pessoas humanas que neste continente sofreram colonização, escravização e dominação, realmente deixaram seus deuses perderem a guerra? Passei a problematizar a interpretação dos fatos da história religiosa da América Latina na perspectiva dos modos criativos e complexos com que negros, indígenas, mestiços, brancos fizeram seus deuses “outros” resistirem, nas dobras da religião estabelecida.
Assim, cheguei às alianças e pactos entre os deuses. Houve alianças nas diversas formas de sincretismo, no modo de preservar divindades e cultos dentro do imaginário da devoção aos santos católicos, na recriação de religião e até mesmo na adesão ao Cristianismo por meio de universos culturais “outros”. Mas houve também pacto radical de deuses, por exemplo, quando nasceu o Vodu haitiano. Os negros escravizados, em luta pela sua libertação, prepararam em segredo sua cerimônia religiosa africana. Quando chegou a hora, invocaram todas as divindades e fizeram com todas elas um pacto de sangue. Depois, entenderam sua vitória contra a escravidão como resultado desse pacto.
JS – Qual é a principal proposta do livro?
Maria Cecilia – Convidar o leitor, a leitora, a olhar as bases humanas, étnicas, culturais e religiosas dos diversos povos da América Latina e do Caribe, para ali identificar os sujeitos dominados que atuaram em espaços marginais, nas brechas do sistema estabelecido, operando adaptações e arranjos. Com isto, deixar para trás a intolerância, a desqualificação das outras religiões e qualquer guerra em nome de Deus. Abrir o coração para seguir a ética global das religiões e assim integrar-se no humanismo que atua em favor da justiça social, da fraternidade sem fronteiras e da paz.
JS – Como avalia a forte presença do Cristianismo na América Latina?
Maria Cecilia – De fato, temos uma história de massiva adesão ao Cristianismo e chegamos ao século XX com grande maioria cristã. Se buscarmos as fontes desta religião que propõe a fraternidade universal, a partilha do pão, o perdão, o amor aos inimigos, a justiça em favor dos pobres e excluídos, poderemos ver que o continente tem um grande potencial para contribuir com a paz no mundo todo. Porém, a história nos mostra que esse bem-sucedido estabelecimento da religião cristã se fez por caminhos sinuosos, marcados por contradições em relação ao Evangelho. Também se fez numa polissemia de mentalidades e práticas. Além disso, essa adesão foi permeada de resistências, de várias maneiras. Temos de tirar lições disso tudo.
Passada a época colonial, o panorama religioso latino-americano pluralizou-se mais e, na pós-modernidade, com crescente secularização, é forte a tendência aos arranjos religiosos dos indivíduos, inclusive de modo eclético. Entretanto, nas últimas cinco ou seis décadas, nosso Continente forjou um Cristianismo da Libertação, que também ficou como herança histórica. Assim, vejo hoje uma América Latina desafiada a um diálogo inter-religioso que seja eficiente nas práticas humanizadoras, e que ofereça a ética cristã como um contributo a mais para a justiça no mundo.
JS – O que as religiões têm a aprender com um passado que muitas vezes derramou sangue?
Maria Cecilia – Têm a aprender com a memória das suas vítimas! Para isto, é importante contar com um empenho de historiografia pautada na objetividade científica e no resgate dessas vítimas de intolerância religiosa. Mas, esse passado também pode trazer agentes religiosos silenciados ou ignorados, sacerdotes e sacerdotisas, missionários e missionárias que deram sua vida, inclusive os não oficiais.
É preciso buscar as causas do derramamento de sangue para não cometer mais os mesmos erros, mas também as lições dos frutos bons que ficaram. Se cada religião buscar um diálogo aberto com as outras religiões, as lições do passado serão mais bem aproveitadas.
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