Por Juliana Baeta Em Notícias

No caminho, a lama

O rompimento da Barragem de Fundão, localizada na região de Mariana, no dia 5 de novembro, devastou vários distritos ao redor, envenenou o Rio Doce, comprometeu outras duas barragens e expôs o mundo à fragilidade das leis ambientais diante da imponência das companhias mineradoras.

Foto de: Mariela Guimarães

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Ex-moradores das cidades destruídas contam experiência e se apegam na fé

Se por um lado perdemos pessoas, trabalhadores, empregos, espécies, plantações, cidades e um rio que desagua no mar, por outro, ganhamos esse nó no peito e a consciência ─ tardia, infelizmente ─ de que há algo errado. Apesar de duramente definitiva, a tragédia pode ter servido para desenvolver um olhar desconfiado sobre as mineradoras que minam a natureza em detrimento de dinheiro, do qual muito pouco volta para o local de onde se tira.

Se nós, observadores distantes, jamais vamos esquecer a tragédia em Mariana, as pessoas que foram atingidas diretamente, dificilmente irão se lembrar de outra coisa. “O Bento”, como seus moradores chamam o distrito de Bento Rodrigues, foi o mais atingido pela lama que encobriu quase todas as casas e a igreja de São Bento, uma relíquia histórica datada do século 18.

A perda vai além da questão patrimonial e se estende por todas as pontas da cidade, pelos distritos vizinhos, pelas histórias que jamais serão contadas e pelos corações de quem já teve casa, identidade, vizinhança e sossego. “A gente gostava muito daquele lugar. Só quem não é de lá que não vai dizer, mas era um lugar muito bom para se morar. Era um lugar gostoso, sabe?”, conta o ex-morador de Bento Rodrigues, José Barbosa dos Santos, de 68 anos.

Da casa dele não sobrou nada. Nem a televisão de LCD que havia acabado de quitar, nem a cozinha planejada que acabara de construir para a mulher (um sonho antigo dela), nem os 60 mil reais que guardava atrás do guarda-roupa, fruto de uma economia de dez anos.

“Depois que o governo Collor reteve as poupanças, eu perdi tudo. Aí tomei birra de banco e comecei a guardar o dinheiro em casa. Demorei dez anos para juntar tudo, ia comprar um carro no ano que vem, aumentar a minha casa”, lembra-se. Sobre o que vai fazer daqui para frente, ele prefere não pensar agora. “Eu não gosto nem de ficar pensando muito nisso, porque a cabeça da gente parece que dá um nó, fica ruim”, diz.

Para ele, a ajuda veio dos vizinhos, mas também de Deus. “Quase todo mundo se salvou porque era todo mundo unido. Éramos uma família mesmo, todo mundo conhecia todo mundo, daí foi cada um puxando os outros pela mão. Tinha uma pedra que acabou segurando um pouco a lama e deu tempo da gente correr. Mas eu penso que foi Deus ali segurando a lama com a mão para dar tempo da gente sair”, lembra, tornando literal o sentido do ditado a fé move montanhas. “Se tinha alguém ainda que não acreditava em Deus em Bento Rodrigues, desse dia em diante passou a acreditar”, completa.

Foto de: Mariela Guimarães

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O aposentado José Barbosa perdeu R$ 60 mil que
economizou por 10 anos, atrás do guarda roupa,
mas o que a lama levou custou ainda mais caro

Isso porque, sem muitas respostas da Samarco, empresa responsável pela tragédia e controlada pela Vale S.A. e pela australiana BHP, os atingidos têm se apegado à única forma que encontraram para ter esperança em um futuro um pouco menos nebuloso: a fé.

O arcebispo de Mariana, dom Geraldo Lyrio Rocha, também lamentou o ocorrido e deixou claro o posicionamento da Igreja: os responsáveis devem ser punidos. Para ele, a situação exige um acompanhamento contínuo, inclusive da religiosidade, para manter a fé dessas pessoas. Por isso, desde a tragédia, missas estão sendo feitas na cidade para que o ocorrido jamais seja esquecido. “Não queremos estar à frente, mas sim ao lado”, afirmou, enfatizando o apoio.

Tesouros perdidos

Em Bento Rodrigues, a associação de produção de geleia de pimenta biquinho, “especialidade da casa”, deu autonomia a oito mulheres do distrito. “Era o nosso xodó a associação. Era o que complementava a nossa renda sem precisar depender de marido”, conta Keila Vardele Fialho dos Santos, 32 anos, uma das mentoras da associação, que começou em 2006 graças à fartura das terras do Bento.

Foto de: Mariela Guimarães

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Keila Vardele, da Associação de Produtores de Pimenta
Biquinho, em Bento Rodrigues. A geleia era exportada
para outras cidades do Estado. Depois da lama,
os trabalhadores ficaram sem espaço e equipamento

Como do solo brotavam frutos por todos os lados, foi preciso pensar em uma receita para aproveitar o excedente, sem desperdiçar. Nascia então a Geleia Bikinho, que levou o nome do distrito para várias outras cidades e estados.

“Todo mundo que provava a nossa geleia e conhecia a associação se apaixonava e voltava”, lembra Keila. Hoje, ela tem mil quilos da pimenta estocados, mas ainda não conseguiu da empresa um espaço para retomar a produção da geleia. Da associação restaram apenas 26 caixas de geleia com 24 potes cada uma, e o produto está prestes a se tornar uma raridade.

Não muito longe dali, a cerca de 120 quilômetros de distância, outra preciosidade culinária também pode estar ameaçada. A cidade de Santa Cruz do Escalvado, que não chegou a ser atingida, de fato, pela lama, produz o delicioso melaço de Crispim, feito ali há pelo menos seis gerações.

Fruto de um processo artesanal trazido pelos negros e que perdurou por mais de um século, o produto agora está ameaçado. Com o acesso prejudicado da cidade a distritos vizinhos de onde algumas matérias-primas eram trazidas, o melaço irá diminuir a produção e, possivelmente, encarecer.

Em Barra Longa, que teve o Rio Carmo (um braço do Rio Doce) devastado pela lama, sobrou apenas barro. A cidade era um polo comercial e estrutural (as crianças de cidades vizinhas estudavam em Barra Longa) para outros distritos, como Gesteira, que perdeu o acesso. Com a chegada da lama, seus moradores e comerciantes ainda não sabem como a vida poderá ser retomada algum dia. “Havia acabado de comprar um grande estoque de material de pesca, vou vender para quem agora? Ninguém sabe se um dia ainda vai voltar a pescar neste rio”, conta Adriana Albergaria, 47, dona de uma loja de variedades.

Dor maior é a do seu Gut, como é conhecido o aposentado Gutemberg José de Freitas, 84, que lamenta não ter mais tempo para ver a recuperação do rio em que pescava desde menino. “Eu sei que eu não vou ver esse rio com vida de novo. Quem sabe meus netos não possam ver? Mas eu não. Eu até luto para viver, mas acho que não vai dar”, lamenta.

Da pracinha reluzente da cidade, só restou o marco histórico que, agora, como uma sepultura, foi cravado ali em 1701, mesma época em que a capela que originou a cidade foi construída. As capelas seculares dos distritos de Bento Rodrigues, Paracatu de Bairro e Gesteira, que tinham peças sacras datadas dos séculos 18 e 19, também foram destruídas e tiveram imagens de mais de 300 anos arrastadas quilômetros abaixo.

Algumas peças foram recuperadas graças a um mutirão promovido pela Promotoria de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas e o trabalho de uma equipe de arqueólogos, mas muitas seguem desaparecidas e possivelmente nunca mais serão recuperadas. Da capela de São Bento, por exemplo, datada de 1718, só foi encontrado, até então, um crucifixo de metal dourado.

Marcas eternas

Os danos físicos causados pela tragédia vão desde ferimentos sofridos por sobreviventes que tiveram de, literalmente, correr para as montanhas e passar a noite na mata esperando resgate, até as mortes provocadas. No total, 19 óbitos, considerando as três pessoas que estão desaparecidas. No entanto há males que ainda poderão ser sentidos por muitos e muitos anos.

Foto de: Mariela Guimarães

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Os médicos voluntários Janaína dos Santos e Daniel Sabino estiveram na cidade para dar assistência.
Eles estão preocupados com a saúde mental dos moradores

 

“Ninguém sabe os efeitos desta lama. Esses laudos ainda não são divulgados. Quem tem contato com a lama, ou mesmo ingere a água contendo resquícios de rejeitos, pode estar se envenenando lentamente. Dependendo do tipo de metal pesado que está nesta lama, eles vão se impregnar nos tecidos nobres, no coração, no cérebro, por exemplo. É como estar envenenando as pessoas aos poucos”, relata a médica voluntária Janaína dos Santos, de Montes Claros, que esteve em Mariana por meio da Associação Médica Nacional e Rede de Médicos Populares.

A presidente do Conselho de Saúde Municipal de Mariana, Patrícia Simões, ainda lembra que a mudança brusca de alimentação pode comprometer a qualidade de vida dessas pessoas. “Eles estão tendo que ficar enfurnados em hotéis ou em casas alugadas e comendo uma marmita que a Samarco oferece, que tem arroz, feijão, um pedaço de carne e uma saladinha de alface com cenoura ralada. Você acha que isso é um grande favor que a empresa está fazendo a eles? A quem estava acostumado a andar livremente para qualquer lugar por aí? A comer o alimento fresquinho colhido no quintal de casa?”, pontua.

Os danos psicológicos também são uma preocupação dos médicos. “O que a gente percebeu no primeiro momento é como a questão psicológica está afetando as pessoas. Elas perderam tudo o que tinham na vida, o espaço em que cresceram, onde se desenvolveram, as referências culturais e isso é muito importante. O que nos preocupa é a saúde mental dessas pessoas, que já apresentam sintomas de depressão, como tristeza profunda”, explica o médico voluntário Daniel Sabino, que veio de Brasília (DF).

“A gente vê que muitos deles estão em choque. Seria importante ter um projeto de acompanhamento dos atingidos a longo prazo, porque essas pessoas com certeza terão traumas”, completa Janaína. 

Patrimônio vulnerável

Foto de: Mariela Guimarães

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Gutemberg José de Freitas nadava e pescava no
Rio Carmo, na cidade de Barra Longa, desde
menino, e hoje se entristece ao saber que não terá
mais tempo de ver o rio com vida novamente

Para o artista plástico Geraldo Zuzu, 58, a tragédia começou há pelo menos quatro décadas. “O progresso da cidade deveria ter sido pensado há 40 anos quando essas companhias chegaram. A mineração poderia tranquilamente ter cuidado da lapidação da cidade, até para justificar o minério que tira daqui, impedindo que houvesse com a presença dela uma descaracterização da cidade, como ocorreu”, conta.

Sobre outras formas de exploração econômica que independa da atividade de mineração, da qual Mariana é “refém”, Zuzu sugere o ecoturismo. “Se a política de meio ambiente fosse eficiente, com certeza poderíamos propor ao turismo o ecoturismo, porque temos potencialidade”, diz.

Ainda sobre a falta de cuidado com a cultura e patrimônio do Estado, ele cita a igreja Nossa Senhora do Carmo, que pegou fogo em 1999 e, desde então, permanece fechada. “Ela foi consumida pelas chamas em um tempo de meia hora. Depois a gente foi parar para pensar. Mariana até hoje não tem um Corpo de Bombeiros. Se pegar fogo em uma casa da Rua Direita, vai pegar fogo na rua inteira. Como reverter isso? Existem duas saídas: educação e cultura”, conclui. 

 

*Esta reportagem foi gentilmente cedida pela Revista Família Cristã aos impressos Associados a Signis Brasil

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