“Certo é que o atual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da ação humana: se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a humanidade frustrou a expectativa divina.”
É com essa forte observação que o Papa Francisco encerra o primeiro dos seis capítulos da Encíclica Laudato Si’, lançada em 18 de junho. O documento trata do cuidado com a casa comum e é popularmente conhecido como Encíclica Ecológica ou Encíclica Verde. Francisco convida toda a humanidade a refletir sobre os erros na relação com o planeta e os caminhos a seguir. Ele destaca temas como poluição, mudanças climáticas, crise da água, perda da biodiversidade, deterioração da qualidade de vida e degradação social. O Papa evidencia a ação humana como principal agente de destruição, questiona o descaso com os direitos dos mais pobres e aponta a educação ambiental como caminho.
“O que mais me impressiona na Encíclica é que o Papa, logo no primeiro capítulo, fala da Amazônia. Eu estive com o Papa e ele me falou que estava pensando em uma Encíclica. Então pedi que ele não se esquecesse da Amazônia e dos povos indígenas, que têm uma função importante no planeta. Realmente fico muito grato que o Papa assumiu nossas preocupações”, comenta o bispo da Prelazia do Xingu, dom Erwin Kräutler.

No trecho dedicado à Amazônia, o Papa ressalta sua importância para o equilíbrio do planeta e o futuro da humanidade:
“Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente.
Mas, quando essas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos”, alerta Francisco.
A Encíclica também faz um apelo às lideranças políticas e empresariais para que alterem o atual modelo de desenvolvimento, criticando a tendência de privatização da água por multinacionais e sua consequente escassez.
Para dom Erwin, é inconcebível que um dom de Deus, como a água — absolutamente necessária à sobrevivência —, seja privatizado.
O especialista em política internacional, mestre em Integração da América Latina e autor de diversos artigos sobre política, economia, sustentabilidade e ecologia, professor Marcus Eduardo de Oliveira, reforça que o uso das águas, dos solos, dos oceanos, das florestas e da vida é um direito universal.
“Garantir isso sem ameaças à sobrevivência da humanidade passa, em primeiro plano, por assegurar condições para que isso aconteça. Quando falamos que agredir a Terra é agredir o próprio homem, fazemos alusão ao fato de que todos nós nos pertencemos mutuamente.
Essa me parece ser a ideia central da Encíclica de Francisco ao destacar a ecologia integral. Há uma passagem que me toca profundamente: ‘Os gemidos da irmã Terra se unem aos gemidos dos abandonados deste mundo’.”
Para o professor, a Encíclica resume duas problemáticas profundamente interligadas: a crise ambiental, com o esgotamento dos recursos naturais (depleção ecossistêmica), e a desigualdade social, que se agrava com os desequilíbrios ecológicos, afetando sobretudo os mais pobres.
Responsabilidade de todos
O presidente da CNBB e arcebispo de Brasília, dom Sérgio da Rocha, destaca que o Papa aborda um tema extremamente atual. “Os problemas são muito urgentes”, ressalta.
Dom Sérgio explica que as responsabilidades pelo cuidado com o planeta são compartilhadas. “Temos vários níveis: pessoal, comunitário e social. Falamos de governos, empresas, organizações da sociedade civil, instâncias internacionais e, também, de cada um de nós. Ler e conhecer bem a temática ecológica, suas reflexões e indicações é fundamental.”
Francisco também condena o comportamento suicida de um sistema econômico mundial que transformou o planeta em um depósito de lixo. Segundo ele, “o mercado cria um mecanismo compulsivo para promover seus produtos, mas esse não pode ser o paradigma de vida da humanidade”.
Aplicando a realidade brasileira, dom Erwin questiona o modelo de desenvolvimento vigente.
“Atualmente, no governo, só se fala em aumentar exportações e expandir o agronegócio. É fundamental que membros do Congresso, do Governo, do Legislativo e até do Supremo leiam essa Encíclica para compreender até que ponto estamos em um caminho que, na prática, deixa os pobres cada vez mais pobres. Não é possível que o agronegócio, como é conduzido, resolva os problemas do Brasil. Porque esse modelo também é responsável pela deterioração do solo e pelo desmatamento. Aqui no Pará, onde estou há 50 anos, sei muito bem o que se faz: derrubam florestas e arrasam a mata.”
Marcus Eduardo reforça:
“O caminho é um só: mudança de paradigma. Crescimento é uma coisa, desenvolvimento é outra. Crescimento está ligado à quantidade; desenvolvimento, à qualidade. Se quisermos um mundo econômica e ecologicamente sustentável, precisamos abandonar políticas que priorizam apenas a expansão econômica. O planeta não suporta mais essa pressão em função do mercado de consumo. Só uma mudança de rota, de modelo e de paradigma nos oferecerá alternativas reais.”
Não importa o credo ou a orientação: todo ser humano precisa de um planeta sustentável e é responsável por colaborar com essa sustentabilidade.
Dom Erwin reforça que o Papa não se dirige apenas aos católicos:
“A Encíclica é bem clara e quer atingir a todas e a todos, independentemente de confissão ou religião. A sobrevivência da humanidade e a crise ecológica são questões que ultrapassam todas as fronteiras. É um assunto de toda a humanidade. O Papa quer, na sua posição de pastor, de Sumo Pontífice, de líder da Igreja Católica — que abrange milhões —, dar sua contribuição, sensibilizando o mundo. Ele se dirige tanto à classe política, empresarial, como também às pessoas comuns, aos trabalhadores, às famílias. Ninguém é excluído. A Encíclica se dirige a todos.”
Ciência e fé caminham juntas
Vivemos um tempo em que fé e ciência se encontram alinhadas.
“O momento é oportuno para colocarmos em prática o que o documento de Aparecida já recomenda: ‘ver, julgar, agir e celebrar’. A visão do Papa sobre a crise ecológica aponta para os mecanismos da tecnocracia. Não há como dissociar ciência e religião. É uma estupidez intelectual pensar nessa separação”, explica o professor Marcus Eduardo.
Segundo ele, o laicato presente nas ciências não afasta a possibilidade de alinhamento com as questões religiosas. “A ciência, com seu saber, está justamente para ajudar a dimensão religiosa a compreender os fatos, entender a dinâmica dos problemas e contribuir na busca de alternativas viáveis.”
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