Foi no coração da Amazônia, por volta das 15 horas, que conhecemos Juci, Jucilene Barbosa Silva, hoje com 36 anos. Sentadas sob um sol forte, mitigado pelo sorvete de açaí, ouvimos sua história que muito se assemelha à de filmes e novelas. Seu sorriso largo e cabelos negros longos, traço característico da população amazônica, devem ter sido o atrativo para fazer da jovem mais uma vítima do tráfico internacional de pessoas.
Tinha 27 anos quando o aliciador a convidou para trabalhar em Roma. Surgiu na porta de sua escola onde fazia o curso Técnico em Enfermagem. A promessa era de trabalhar no exterior, aprender o idioma e crescer profissionalmente. A proposta parecia conveniente, mas a rapidez na liberação do passaporte para a viagem internacional já apresentava indícios de irregularidade.
Foto de: Osnilda Lima, fsp
Juci foi vítima do tráfico de pessoas. Humilhada e
explorada, quase morreu
Cerca de 30 dias depois do convite, Juci embarcou e aterrissou em um pesadelo. “Quando chegamos ao apartamento em Roma, abriu a porta, entramos e ele a trancou. Estávamos sozinhos em um quarto escuro e abandonado; quando me virei, ele segurava um revólver. Pegou meu passaporte, ele me espancou e me estuprou.”
Começava o trabalho escravo de Jucilene. Por cerca de três meses, foi abusada sexualmente por seu aliciador, e à noite, era negociada com outras meninas, nos “clubes” de Roma. “As meninas ficavam em fila, e os clientes olhavam por um buraco, escolhiam e íamos para os quartos que nem tinham camas, nada. Era no chão mesmo; era assustador o que faziam com a gente”, conta Jucilene que era obrigada a injetar drogas nas demais meninas e em si mesma, para que pudessem suportar as diferentes formas de exploração sexual a que eram submetidas.
“Eu vi meninas morrendo e outras chegando. Não me esqueço de uma menina, Sandra Oliveira, que morreu nos meus braços. Ela era de Curitiba (PR). Peguei no pulso dela e estava muito fraco, ela estava tendo overdose, só pediu que eu dissesse aos pais dela que só queria ser modelo. Esses pais devem ter procurado tanto por ela. Era bem branquinha, tinha uma mão macia e uma tatuagem, que parecia uma estrela”, conta Jucilene.
O dia a dia em Roma era de tortura; além da exploração sexual, vivia em condições degradantes, como se fosse possível algo pior. Dormia no chão, não se alimentava, evitava fazer a higiene pessoal para afastar os “clientes”, o que lhe causou a perda de um dente e infecções uterinas. “Era um local imundo e, além de me estuprar, ele me torturava psicologicamente. Brincava de vivo ou morto comigo com uma faca nas mãos.”
O aliciador conhecia bem a vida de Jucilene, sabia de suas memórias, da morte de sua mãe quando ainda era criança, que sonhava entrar na faculdade, que tinha sido explorada sexualmente por um parente próximo, dos 10 aos 18 anos, quando enfim o denunciou. “Ele sabia toda a minha história. Ele queria me enlouquecer. Foi alguém muito próximo quem montou meu dossiê para ele”, conta a jovem, que acredita ter sido vendida por quem a abusou na infância.
Fuga e acolhimento
A tortura de Jucilene prosseguiu até o dia em que conseguiu fugir, o modo não se sabe bem ao certo, já que Jucilene deu versões distintas, em diferentes momentos, devido sua saúde psicológica que ficara abalada pelo drama vivido. À reportagem contou que conseguiu abrir a mala de seu aliciador, enquanto ele dormia, e ali encontrou as chaves do apartamento. “Quando abri − o cadeado da mala continha um segredo −, eu pensei esse é o momento. Ele estava roncando, então peguei duas chaves, uns documentos em italiano, minhas fotos nuas, tiradas por ele. Peguei o cartão (continha o nome do clube onde era explorada), e a mala. Eu me lembro de que estava de bota, por causa do barulho. Abri a porta e fui descendo. Só que tinha um último portão, aí desceu um rapaz, que abriu a porta, e eu saí”, disse.
Na versão contada ao padre Oscar Gil Garcia, que acolheu Juci no dia de sua fuga, algumas moças de língua espanhola não tinham trancado bem a porta, e que como estava com fome, saiu do quarto para procurar comida, foi abrindo portas e mais portas até que chegou à rua. “Vi a Rua Pellegrino (Via del Pellegrino). Meu olho turvava, passou o trem, tinha uma ‘pontezinha’, um rio e ali pensei em me jogar, acabar com aquele sofrimento de uma vez, mas resolvi procurar ajuda”, contou Juci.
Remontando seu trajeto, observa-se que Jucilene escapou do cativeiro na Via del Pellegrino, uma região movimentada de Roma, de lá teria caminhado por cerca de dez minutos até o Largo di Torre Argentina. É, possivelmente, nesta região que ela viu o trem antes de atravessar a ponte. Padre Oscar acredita que para ter chegado até ele, no bairro de Trastevere, ela pegou informações na embaixada brasileira, que fica na Piazza Navona, e depois na Igreja Santo Antônio dos Portugueses, onde se reúne a comunidade portuguesa. Esse trajeto para uma pessoa em condições físicas normais levaria cerca de 20 minutos, mas Juci estava muito debilitada.
Da igreja Santo Antônio, na Via del Portoghesi, até a Igreja Santa Maria della Luce, no bairro de Trastevere, seriam mais 20 minutos. “Quando ela apareceu na igreja tinha um chinelinho, mas não uma havaiana, um chinelo de mulher, de casa... um jeans, eu me lembro bem, sujo. Tinha uma camiseta, uma blusa com listras, lembro mais ou menos”, conta o padre Scalabriniano Oscar, que trabalhou na igreja de Trastevere de 2000 a 2007. A reportagem encontrou padre Oscar na Suíça.
“Era março. Ela estava sentada no fundo da Igreja. No princípio pensei que ela estava passando mal. Comeu pouco conosco, e estava muito cansada”, disse o padre, que contou com a ajuda de uma voluntária naquela noite para acolher e cuidar de Jucilene. “A igreja não tinha estrutura, não tinha como dar assistência à mulher. Eu sempre digo que Deus tem sempre resposta para todos”, afirma o padre.
Dali para frente, através de uma rede de contatos, Jucilene chegou à casa de uma família italiana. “Nós fazíamos todo um trabalho de encaminhar pessoas, de falar com elas, arriscávamos enviando pessoas sem saber quem eram. Arrisquei muito meu nome, a Igreja, a congregação, porque encaminhava essas pessoas sem pensar que elas podiam nos colocar em problemas, como tive problemas”, conta o padre.
“Acho que ela foi encaminhada a uma dessas famílias, só que eu não tenho mais informações. Ela estava caída quando chegou e depois eu a vi bem, muito bem mesmo. Bem apresentável, bem limpa. Um olhar de vida, isso me lembro bem”, revela o padre. Jucilene se lembra com carinho da família italiana que a acolheu, Franco e Rosella Belmonte, com quem viveu nos bairros de Frascati e Bracciano.
“Eles me deram um quarto, roupas, livros, cuidaram de mim e de minha saúde”, conta Jucilene, que foi internada três vezes. “Os pais adotivos” a levaram até o Convento della Consolata, em Nepi, onde Jucilene conheceu a irmã Adriana, cujo sobrenome não recorda. A religiosa a convenceu a denunciar seu aliciador e a acompanhou no depoimento e na realização do exame de corpo delito.
Jucilene denunciou e um processo foi instaurado em 2005. Documento da Procuradoria da República do Tribunal de Tivori aponta que o aliciador induziu Jucilene à prostituição, na qual foi forçada a ter relações sexuais com homens e mulheres.
O aliciador chegou a ser preso, mas o processo ficou sem conclusão porque aguardava o depoimento de Jucilene. Segundo a jovem foi informada, seria convocada a prestar depoimento por videoconferência em 2013, o que não correu.
À época, o vice-cônsul brasileiro na Itália, Rodrigo Roberto Outeiro de Azevedo Lima, ofereceu ajuda para que Jucilene voltasse ao Brasil, ela aceitou e retornou em 2006. Neste momento, conta com advogados do Estado para que a justiça seja feita. Sem proteção, prefere não dizer onde reside, já que teme retaliações do parente que a violentou durante sua infância e adolescência.
Foto de: Revista Família Cristã
Retorno à vida
Quando voltou ao Brasil, Jucilene se deparou com uma sociedade despreparada a acolher vítimas como ela. Segundo a pesquisadora do tema Tráfico internacional de pessoas com ênfase no mercado sexual, Cristiane Araújo de Paula, questões como a moralidade, influência religiosa, sobreposição do homem sobre a mulher decorrente de fatores históricos, que ainda se encontram estigmatizadas em nossa sociedade, prejudicaram em muito o desenvolvimento de estudos e medidas nacionais e internacionais realmente eficazes que contemplem todo o panorama relacionado à problemática do tráfico em todos os seus reais aspectos, causas e efeitos.
“Durante os meses seguintes, ainda tive surtos de depressão em que quebrava objetos e me jogava no chão, rastejava... A minha família tinha vergonha de mim, achavam que eu sabia que ia ser prostituta na Itália”, conta a jovem, que abandonou os parentes, desde que retornara de Roma, e atualmente mora com a família de seu namorado.
Jucilene estuda para se promover na empresa onde trabalha de segunda a sexta-feira. Já deu aula para crianças, e fez curso de Nutrição. Passou por psicólogos e psiquiatras por mais de dois anos. Manteve-se financeiramente com auxílio-doença e com a ajuda de religiosas. Participa das oficinas da Rede Um Grito pela Vida, da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), onde conta sua história para que outras jovens não caiam no mesmo pesadelo. “Quero que minha história sirva de alerta para outras mulheres. Quero voltar à Itália e reencontrar Babbo e Rosella”, diz, apontando ainda que se não fosse à Igreja, que a acolheu e lhe mostrou o caminho de procurar justiça, já estaria morta, sem esperança.
Quatro horas depois do início da entrevista, o sol já tinha se despedido. O sorvete esquecido, sobre a mesa, virara um caldo. O gravador foi desligado, o bloco fechado. Jucilene despedia-se com um sorriso bom, incompatível com os lábios de quem já sofrera tanto. O que a mantém sorrindo? “Só Deus para me fazer viver dia a dia e esquecer esse passado que, vira e mexe, me visita.” Ela se despediu da equipe e saiu às pressas: “Agora vou à missa, estou atrasada”.
Outras Silvas no tráfico
Jucilene não foi o único caso atendido pelo padre, que, por carisma da Congregação dos Missionários de São Carlos, Carlistas ou ainda conhecidos como Scalabriniamos, trabalha com migrantes. Padre Oscar Gil Garcia conta que, em 2000, houve um grande movimento de mulheres em Roma. “Roma virou um centro de atração mundial, veio muita gente em busca de trabalho, mas, sobretudo, de prostituição juvenil, seja de homens, seja de mulheres”, diz o padre.
“Nossa igreja deu ajuda a essas pessoas que vinham escapando da prostituição. Essas pessoas eram levadas para toda a Europa. Em Portugal, chegava muita gente do Brasil que procurava por meu nome porque tínhamos ali um grupo de leigos que dava assistência”, conta.
A igreja no bairro de Trastevere, em Roma, vivia cheia de gente que não buscava a reza apenas, mas a assistência. “Fazia fila, chamava a atenção a quantidade de mulheres que falava espanhol e português”, denuncia o padre.
Apontado como uma das atividades criminosas mais lucrativas do mundo, o tráfico de pessoas faz cerca de 2,5 milhões de vítimas, movimentando, aproximadamente, 32 bilhões de dólares por ano, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Atualmente, esse crime está relacionado a outras práticas criminosas e a violações aos direitos humanos, servindo, não apenas à exploração de mão de obra escrava, mas também a redes internacionais de exploração sexual comercial; muitas vezes, ligadas a roteiros de turismo sexual e a quadrilhas transnacionais especializadas em remoção de órgãos.
Estimativas do UNODC, no mundo, indicam que a exploração sexual é a forma de tráfico de pessoas com maior frequência (79%), seguida do trabalho forçado (18%), atingindo, especialmente, crianças, adolescentes e mulheres. O fato é que o tráfico de pessoas não é um problema só dos países de origem das vítimas, mas também dos de trânsito e de destino.
Segundo o relatório preliminar da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Pessoas, para investigar o tráfico de pessoas no Brasil, período de 2003 a 2011, obtido com exclusividade pela reportagem, ao longo de suas investigações, a CPI do Tráfico de Pessoas tem descoberto pontos de fragilidade na legislação brasileira, os quais têm permitido aos criminosos escapar da punição e conseguir levar a cabo suas finalidades criminosas na atividade de tráfico de pessoas.
Nesse sentido, de acordo com a CPI do Tráfico de Pessoas, a lei penal no Brasil ainda é incompleta, o que resulta em punições brandas para esse tipo de crime. E não há um capítulo do Código Penal que cuide, de modo concatenado, das diversas hipóteses inerentes ao delito relacionado ao tráfico de pessoas, que trate os aspectos relacionados ao aliciamento, transporte e exploração. “A lei brasileira não dá tratamento específico a diversas condutas previstas nos protocolos”, revela a CPI.
“Identificamos diversas modalidades por meio das quais o tráfico de pessoas é praticado no Brasil, quer no âmbito interno, quer para o exterior. Uma dessas situações é o aliciamento para suposto trabalho em outras cidades do Brasil, ou seja, o tráfico interno; ou no exterior, o tráfico internacional, por meio de propostas de emprego vantajosas, iludindo pessoas”, relata a CPI.
Esse esquema, segundo a CPI, conta com uma rede criminosa extensa, que envolve donos de hotéis, de bares, de boates, de agências de viagem, de agências de emprego e até mesmo autoridades e agentes públicos, como policiais, delegados e políticos.
Convenção de Palermo
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida como Convenção de Palermo, é o principal instrumento global de combate ao crime internacional. A convenção é complementada pelos protocolos que abordam áreas específicas: prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas; combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea e contra a fabricação, e o tráfico ilícito de armas de fogo.
Os Estados membros que ratificaram este instrumento se comprometeram a adotar uma série de medidas contra o crime organizado transnacional, incluindo a tipificação criminal na legislação nacional de atos como a participação em grupos criminosos organizados, lavagem de dinheiro, corrupção e obstrução da justiça. A convenção também prevê que os governos adotem medidas para facilitar processos de extradição, assistência legal mútua e cooperação policial.
“Em meio a essas denúncias, veio à tona uma realidade espantosa: O Brasil é um dos países campeões no mundo em relação ao fornecimento de seres humanos para o tráfico internacional,” afirma a relatora da CPI do Tráfico de Pessoas, deputada Flávia Morais (PDT/GO).
Ainda de acordo com o relatório da CPI, o tráfico de pessoas tomou visibilidade no contexto brasileiro e foi considerado um problema de governo no Brasil, após divulgação dos resultados de Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (PESTRAF), encomendada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). “A pesquisa evidenciou a ocorrência e a gravidade desse problema em todo o território brasileiro. Ela foi realizada em 2002 e mapeou 241 rotas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Desse total, 131 rotas eram internacionais, 78 interestaduais e 32 intermunicipais”, consta o relatório.
“Diante de todo esse quadro tenebroso do crime organizado no Brasil, necessitamos de providências urgentes, de mecanismos legais que permitam um combate mais efetivo a essas ações criminosas, bem como instrumentos legais de punição adequada e proporcional à gravidade desses delitos monstruosos”, conclui o relatório da CPI do Tráfico de Pessoas.
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