“Fundamentalismo: desafios à Ética Teológica” foi o tema do 41º. Congresso de Teologia Moral, realizado em São Paulo, no Centro Universitário Salesiano (UNISAL)/Campus Pio XI, de 28-31 de agosto de 2017. Esta serie ininterrupta de eventos, que teimosamente persiste no tempo, teve início no imediato pós-Concilio (1962-1965), quando um grupo de professores de Teologia Moral Brasileiros, inquietos e esperançosos com os novos ares Conciliares da “moral renovada”, começaram a se reunir para elaborar um novo currículo de ensino de Teologia Moral para os estudantes de teologia. Nascia então a Sociedade Brasileira de Teologia Moral- SBTM, que vai ser a promotora e animadora destes Congressos ao longo destas quatro décadas de existência. A cada ano são escolhidos para o estudo, debate e aprofundamento temas de atualidade que desafiam a visão, pensamento, educação e práxis crista na atualidade. Na atualidade a Presidente da SBTM é a médica e teóloga da moral, Maria Inês de Castro Millen, coadjuvada por Ronaldo Zacharias, salesiano (secretário) e Celito Moro (Santa Maria – RS), tesoureiro.
Neste 41º. evento, uma plateia seleta, de pouco mais de cinquenta professores de Teologia Moral, brasileiros e estrangeiros, bem como participação de alguns leigos estudiosos do assunto e estudantes de Teologia, debateram a temática reuniram-se para debater e aprofundar esta instigante e preocupante questão do crescimento dos fundamentalismos, em amplos setores da vida humana, que acabam desembocando em fanatismos nocivos e promotores de violência.
Uma programação cuidadosamente desenhada abordou em forma de conferencias e mesas-redondas os seguintes aspectos do tema geral: Os riscos do fundamentalismo e do fanatismo (Luiz C. Suzin (PUC- Porto Alegre); O dialogo plural como caminho ético-moral (Elio E. Gasda (Faje-BH) e Emilce Cuda (UCA – UNAJ – Buenos Aires); fundamentalismo Bíblico-teológico-religioso ( Johan M.H.J. Konings ( FAJE- BH); A pluralidade hermenêutica como caminho ético-moral ( André L. Boccato de Almeida (PUC-SP) e Amarildo J. de Melo (ISTA – CH); A Bioética hoje e o risco dos fundamentalismos: identificando alguns receios, anseios e devaneios ( Léo Pessini - Camillianum – Roma); Amoris Laetitia, um “não” à pretensão fundamentalista ( Ronaldo Zacharias (UNISAL – SP); Do desenraizamento ao fundamentalismo: uma visão a partir do enraizamento Weiliano e do diálogo libertador freireano ( Alexandre A. Martins, Camiliano – Marquette University – EUA): O respeito à diversidade como caminho ético-moral (Maria Inês de C. Millen).
Uma publicação específica, SBTM/Editora Santuário, recolhe e pereniza toda a riqueza destas apresentações, como tem ocorrido ao longo dos últimos anos, com o mesmo tema do Congresso, ou seja: Fundamentalismo: desafios à ética teológica (Andréia C. Serrato (PUC-PR); Maria Inês de C. Millen & Ronaldo Zacharias (Orgs.). Tivemos também neste evento a ilustre visita do recém ordenado Bispo, Dom Luiz Antoniio Lopes Ricci, Bispo Auxiliar de Niterói (RJ), teólogo moralista, membro da SBTM, que apresentou brevemente sua obra “A morte Social: mistanásia e bioética” (Editora Paulus, S. Paulo, 2017).
Fazemos a seguir alguns destaques de aspectos que nos marcaram neste evento, e que merecem nossa atenção. Começa-se a falar de “fundamentalismo” no sentido teológico entre os presbiterianos conservadores dos EUA no final do século XIX e início do século XX, voltando-se para as questões dogmáticas. Passou-se então a falar dos “cinco fundamentos”: 1) a inspiração Bíblica pelo Espírito Santo e a inerência das Escrituras; 2) O nascimento virginal de Jesus; 3) A crença de que a morte de Cristo foi a redenção para o pecado; 4) A ressurreição de Jesus, 5) A realidade histórica dos milagres de Jesus. Hoje o termo fundamentalismo ganhou um significado ampliado, apontando pra movimentos e /ou atitudes, na teologia e em outros campos, para além do âmbito religioso inclusive, que se agarram de uma forma irremovível a determinadas posições, como dogmas inquestionáveis. Deparamo-nos assim com fundamentalismo de cunho sócio-econômico-político e ético-moral em geral, entre outros.
Segundo o biblista, Dr. Yohan Konings “o problema do fundamentalismo não é seu conservadorismo ou tradicionalismo, mas sua recusa de diálogo e interpretação”. Na verdade os fundamentalismos e fanatismos são expressões de enfermidade e patologias do pensamento e visões humanas, que necessitam de uma urgente intervenção terapêutica em vista de saúde. Neste cenário, necessitamos de educação terapêutica das nossas consciências. Uma consciência e convicção religiosa que saiba respeitar o sadio pluralismo religioso e laicidade secular, como espaços preciosos de diálogo na sociedade de hoje. Enfim necessitamos de um constante e ativo exercício hermenêutico e espirito de discernimento para não ficarmos dogmaticamente presos a uma visão dicotômica do reducionista do “branco ou preto”, frente a situações humanas conflitivas, mas que seja capaz de acolher as “zonas cinzas” do ser, agir e comportamento humano. Trata-se de um pensamento, visão e ação “hospitaleira” que acolhe o diferente, marcada pela inclusão, compaixão e solidariedade, e não uma postura de “hostilidade” que exclui o diferente com violência (fanáticos). Em vez de ser para e pelo outro, posiciona-se contra “o outro”, que é eleito como inimigo a ser combatido.
Lembramos ainda das aulas de metodologia científica em tempos de estudos filosóficos, quando mestres lúcidos, herdeiros luminares de saberia, insistiam sem cansar em nos dizer para além do texto, que sempre precisamos sempre colocar “o texto, no contexto para que depois não sirva de pretexto”. O que se diz da ética teológica, o mesmo pode ser dito em relação a bioética. Como afirma Bruce Jennings (editor-chefe da última edição da Encyclopedia of Bioethics, 2014), “Se a bioética não for crítica, pode se tornar apologética ou ideológica”. Sem dúvida alguma a crítica hermenêutica será sempre um remédio necessário e eficaz para garantir a lucidez e sapiência do pensamento ético teologio e bioética em combater preventivamente toda e qualquer patologia ou enfermidade do pensamento, fundamentalista que alimenta ações de fanatismo e violência.
Da análise do Documento Amoris Laetitia, que gerou e ainda gera tanta polemica na alta hierarquia da Igreja, fruto de dois Sínodos preparatórios e chancelada pelo Papa Francisco, vimos com Ronaldo Zacharias que a moral que subjaz a este documento é profundamente libertadora. Esta perspectiva leva a priorizar o sujeito; dar importância às circunstâncias e consequências e intenções dos atos; priorizar o valor e não a norma; apontar para o exercício do discernimento continuo e a importância pedagógica e orientativa da norma; a busca do bem maior possível numa determinada situação, a importância de afirmar o papel da consciência no discernimento moral, e prioridade dada à realidade e não as ideias (interpretações do real).
Uma constatação dolorosa que fizemos, quase que em uníssono é que hoje existe uma crise de confiança no futuro. Cresce assustadoramente o números dos ateus em relação a um futuro promissor para a humanidade. O nosso estimado e querido Papa Francisco é o único no mundo de hoje, entre os líderes mundiais que tem a coragem de falar a respeito de necessidade de esperança e que temos que nos cuidar dos “profetas da desgraça”! Não é à toa que a última obra póstuma de Zigmunt Bauman, este pensador que faleceu no início de 2017 tenha como título retrotopia. Ele afirma que em relação ao futuro temos somente coisas ruins anunciadas: aquecimento global, crescente exclusão dos migrantes pobres, crescimento da xenofobia (Europa), falta de emprego para todos os que entram no mercado, globalização que aumenta a exclusão, entre outros. Neste sentido o progresso em curso, “deixa de ser uma benção” para se tornar também uma “maldição”. E o único lugar onde vamos nos encontrar realmente “seguros” será no passado. Daí a tendência “retro”, isto é, de ver o futuro no passado! Bauman chega a afirmar na conclusão de seu pensamento, que se não formos capazes de nos dar as mãos frente a estes desafios que nos atormentam, “ganharemos todos sepulturas comuns”.
Ao falarmos de fanatismo, tanto de cunho religioso ou não, é bom lembrar o que diz Amós OZ, escritor israelense e ativista político, na sua obra mais recente lançada no Brasil, “Como curar um fanático”. Sua definição é emblemática: “O fanático nunca entre em um debate. Se ele considera que algo é ruim, seu dever é liquidar imediatamente aquela abominação. Todos os tipos de fanáticos tendem a viver num mundo em preto e branco. Num faroeste simplista de mocinhos contra bandidos. O fanático é na verdade um homem que só sabe contar até 1.” Lamenta-se OZ, afirmando que “a vacinação parcial que recebemos contra o fanatismo está se esgotando. Ódio, fanatismo, aversão ao outro e ao diferente, brutalidade revolucionária, o fervor de esmagar definitivamente a todos os malvados mediante uma banho de sangue´, tudo isso está ressurgindo. Para o fanático, não se trata de fazer valer uma ideia ou um ideal, mas de querer purificar o mundo a ferro e fogo, exterminar a diversidade, converter os malditos infiéis e, constatado o fracasso prévio da `missão sagrada, dizimar o oponente. O culto à personalidade, o deslumbre pela celebridade, a busca pelo líder histriônico que salvará a pátria é o que mais importa para os fanáticos. Conclui seu ensaio, Amós Oz, sendo judeu, argumentando que todos os mandamentos que regem a fé e a cultura de sua gente poderiam ser resumidos numa só frase: “Não causarás a dor”.
Ao longo das discussões deste 41º. Congresso de Teologia Moral, no calor das discussões lembramos do que já dizia, o teólogo italiano de renome internacional, Bruno Forte, hoje bispo de Chieti (Italia), no tocante a realidade em que hoje vivemos. Na sua palestra no Congresso Internacional de Teologia Moral (Trento, Itália, 24-27/07/2010) em 2010, ele utilizou a imagem e uma metáfora para descrever os tempos de hoje. Trata-se da metáfora do naufrágio, no bojo da qual nasce a necessidade de ética e transcendência. Afirma Forte que o barco da humanidade naufragou no mar revolto da história, e os instrumentos que possibilitariam navegação tranquilo, direção certada e chegada a terra firma estão todos danificados. Estamos perdidos em alto mar, e com sério risco de afogamento. O que fazer? Os náufragos necessitam uns dos outros para sobreviver. Se forem uns contra os outros, é o fim de tudo. Se se ajudarem e uns forem para e pelos outros, com o que resta da embarcação, pedaços de tabuas, botes salva vidas, temos chances de chegar vivos na praia. E aqui Forte fala da primeira das quatro dimensões de uma ética teológica necessária para o hoje da humanidade. A primeira dimensão é este, nunca sem o outro. Não existe ética sem o reconhecimento do outro, na sua irredutível originalidade. A segunda dimensão é a realidade que no princípio de tudo, está o dom. Não existe ética sem a gratuidade a começar pelo valor da própria vida humana. Hoje se coloca preço em tudo, uma precificação da vida que lhe subtrai a dimensão de dom! A terceira dimensão é que não existe ética sem a prática da justiça. Precisamos conjugar a ética com a prática da justiça e da solidariedade com os últimos da terra. É isto que faz com que na “aldeia global”, sejamos uns pelos outros, e não uns contra os outros. É, isto que proporciona as condições de navegabilidade do barco da humanidade. E por fim, a quarta dimensão, a necessidade de uma ética da transcendência. Aqui emerge o rosto do outro como soberano. O amor pelos “últimos” da terra nos remeta ao “Amor último”. A ética da transcendência é a ética do amor e da esperança.
É esta visão e tábua de valores que pode servir como nosso GPS para guiar o barco da humanidade dando-lhe condições de navegabilidade para singrar os mares agitados da história do presente em direção ao futuro. Não podemos deixar de nos alegrar com a inconteste liderança no cenário mundial que o Papa Francisco tem hoje, e ao nos chamar para cultivarmos a teimosia da esperança. Ele não cessa de nos alertar criticamente a respeito da necessidade de discernimento perante as situações “cinzas” da vida, quando os fundamentalistas somente vêem “preto e branco”. Num livro d entrevistas a ser lançado na França, comenta a respeito “dos padres rígidos, que têm medo de se comunicar. Trata-se de um fundamentalismo. Quando encontro alguém rígido, em especial se ele é jovem, eu digo para mim mesmo, que ele está doente. Na verdade estão procurando segurança” (Folha de S. Paulo, 2/07/2017.
Que triste doença está de ver, encarar e viver a vida somente em “preto e branco”, quando a criação divina é tão rica e linda quando a respeitamos como sendo originalmente multicolorida. Necessitamos urgentemente de uma ética da esperança. Lembramos de um dos pastores profetas de nossa terra que nos deixou recentemente, Dom Paulo Evaristo Arns. Ele tinha como lema pastoral de vida, para animar o povo e iluminar caminhos, caminhar sempre em frente “de esperança em esperança”! Não deixemos pois que “nos roubem a esperança” (Papa Francisco).
Pe. Léo Pessini
Doutor em Bioética, conferencista nacional e internacional com inúmeras obras publicadas no Brasil e exterior. É religioso camiliano e atualmente é o Superior Geral dos camilianos.
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