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Sentimento oceânico e religião

Roberto Girola

Escrito por Roberto Girola

05 JAN 2014 - 02H47 (Atualizada em 14 DEZ 2022 - 11H27)

No fim de sua vida, sofrendo de câncer, Freud escreveu alguns textos que abordam fenômenos sociais em sua expressão religiosa (O futuro de uma ilusão, de 1927), e em sua dimensão cultural (O mal-estar na civilização, de 1930).

Neste último texto, respondendo às objeções do amigo Romain Rolland ao seu ensaio sobre a religião, Freud descreve o que Rolland chama de sentimento oceânico e tenta associar a experiência religiosa a um fenômeno que tem sua raiz em um sentimento primitivo da psique.

Freud reconhece que existe no psiquismo uma experiência primitiva ligada ao fato que o ser humano nasce sem conseguir se diferenciar psiquicamente do ambiente, se sentindo um todo com o mundo externo. A memória da experiência do todo estaria relacionada a esse sentimento primitivo, oceânico.

Assim como provavelmente, Freud, ao se declarar ateu, queria manter distância de um Deus no qual não conseguia acreditar, muitas vezes a experiência religiosa em sua expressão mais profunda e verdadeira se depara com a necessidade de “perder” Deus, pelo menos esse deus antropomorfo, com o qual o crente estabelece uma relação imatura e regredida.

Leia Mais“Advento é tempo de espera e conversão”, explicam sacerdotesO grito de abandono de Cristo na cruz não teria esse sentido?

Os grandes mestres espirituais, incluindo os cristãos, alertam para a necessidade de que a experiência religiosa passe por um processo ascético de “purificação”, que muito se assemelha com a “perda” de Deus.

Bastaria mencionar as “noites” de São João da Cruz e a subida ao Monte Carmelo de Santa Teresa de Ávila para exemplificar esse processo.

Trata-se de um evento doloroso, que coloca a psique em contato com experiências contraditórias, que minam a “segurança” que a maioria das pessoas busca na religião.

Tudo isso remete à experiência que os cristãos celebram no Natal. Deus “deixa” sua “segurança”, sua “onipotência” para se manifestar como ser humano que, como todo bebê, nasce na insegurança, na dependência e que, embora seja a Palavra Criadora, somente se expressa em incompreensíveis balbucios.

:: Será que temos "sentimentos oceânicos" em relação à nossa pertença a Deus? Fica a reflexão.

Escrito por
Roberto Girola
Roberto Girola

Psicanalista e terapeuta familiar

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