Palavra do Associado

O Natal na manjedoura da caatinga

Escrito por Ciro Leandro Costa da Fonsêca

19 DEZ 2016 - 10H00 (Atualizada em 28 DEZ 2022 - 08H51)

Nascer no sertão, seja em Belém da Cisjordânia ou no sertão árido do Nordeste brasileiro requer coragem de um Menino Deus. A manjedoura que o espera é mesma, seja no oriente ou no ocidente. O Nordeste é uma réplica de Belém de Judá, terra de Davi, onde nasceu seu filho maior.

Em pleno nordeste, a Terra Santa se materializa, o mistério se renova, os pés tocam o solo sagrado onde nasceu o Salvador e caminhou ao lado da sua Sagrada Família. Se fosse Rachel de Queiroz a narradora dessa história, repetiria que só compara os mistérios do Nordeste aos de Israel, aos da Terra Santa, onde o céu se uniu a terra numa noite santa, que mudou o destino da humanidade.

Os ecos do Natal ressoam nas vozes da memória, e um Menino nascido em Belém passeia pelo mundo, pois seria egoísmo demais só Israel participar do divino mistério da encarnação. Passeou ao lado de Maria, José e do humilde animalzinho que o carregou nas horas mais sofridas, na barriga da sua Mater Dolorosa como primeira de suas grandes dores, de sua Via Crucis ao lado do Menino.

Da Terra natal do Menino até os confins do mundo, cada cristão também se torna um narrador sagrado do Verbo feito carne. Nascido em Belém, em meio aos inocentes animaizinhos do estábulo, muitos daqueles inocentes que O acompanhariam ao longo da jornada terrestre, caminhando pelo mundo, por terras áridas, sofridas à espera de salvação e em busca de proteção contra os tiranos de um mundo cujo reino não é o seu.

Depois do nascimento em Belém de Judá, perseguido pelo rei Herodes, o Menino Deus esteve acompanhado de seu pai José, puxando o jumentinho fiel que não mais os abandonou desde que O adorou na manjedoura, montado junto a sua Mãe.

Nessas muitas andanças, ao saberem da morte dos santos inocentes pela espada sangrenta dos soldados de Herodes, fugiram para o Nordeste do Brasil, terra distante onde milhões de santos inocentes se transformam em anjinhos, como aqueles que cantaram o Gloria in Excelsis Deo, mortos pela fome e pelo descaso dos muitos Herodes que já reinaram nessa terra.

Caixões de anjinhos, parecendo o Menino Deus no presépio, como comparou Rachel em suas histórias, descem a terra, e foi justamente para esse deserto que o pobre Menino fugiu com a sua família e seu fiel e inocente guardião, o jumentinho, tão sabiamente chamado de “O jumento, nosso Irmão”, na pena do cearense Padre Antônio Vieira.

Como irmão tratava o Menino ao humilde animalzinho, incansável nas andanças pelo mundo chegando ao sertão, trazendo no lombo o Verbo da SalvaçãoNesse lajedo, a família e o Menino chegaram pela direção do poente, como se dessem as costas para as trevas, caminharam em direção ao nascente de um novo tempo.

Nesta fuga da tirania de Herodes, a Sagrada Família de Nazaré saiu pelo sertão nordestino, tão castigado pelas secas, que lembravam o deserto atravessado pelos hebreus em busca da Terra Prometida. Esqueletos de árvores à espera do milagre da chuva foram aguados pelas lágrimas de Maria.

Na passagem do Menino, o sertão seco e cinzento, uma terra aparentemente morta, milagrosamente se reacendeu, como se reconhecesse na presença Dele a sua capacidade de resistência, de vitória sobre a morte.

Deixou marcas da sua passagem em diversos lugares do sertão: na Serra do Horto, em Juazeiro do Norte, onde no futuro milhares de cristãos buscariam relembrar e reviver os sagrados mistérios; nas pedras da Serra do Lima, no Rio Grande do Norte, onde Nossa Senhora desceu para beber água e deixou a marca do seu pé, local de fé, de velas acesas que iluminam o caminho dos peregrinos e a vida dos sertanejos.

A sua última passagem pelos caminhos do sertão foi no Lajedo de Zé Gonçalves, como ficaria conhecido pela memória cristã sertaneja o conjunto de pedras que arranchou o Menino Deus e sua família, hoje na Vila São Bernardo, em Luís Gomes, sertão do Rio Grande do Norte.

José tirou as suas botas, sentou no lajedo e descansou com o Menino no colo. Maria aproveitou para contemplar a obra de Deus nos sertões, deixando numa pedra a marca do seu pé, como também deixou o Menino o signo da sua passagem em forma de pegada.

Seguiram a caminhada para outros continentes. A pegada do jumentinho também ficou nas pedras, como sinal de que o sertão tão deserto como o atravessado pelos hebreus estaria tocado, marcado para sempre pelas sagradas pegadas até os confins dos tempos, como prova de que participou dos sagrados mistérios do Natal. Assim, todos os sertanejos poderiam contemplar a passagem do Verbo encarnado e de sua família pelo mundo, fugindo de Herodes e levando o Evangelho até o fim do mundo.

A história é dividida e marcada pela encarnação do Verbo, andarilho a anunciar desde menino um novo tempo para os desertos, os sertões áridos, carentes de água, vida e Evangelho. No princípio, o Verbo estava com Deus e um novo princípio desce a terra.

Neste novo começo do mundo, o Menino estremecia no feno e toda a humanidade se compadecia de Deus, como cantou a poetisa Adélia Prado. Todos os povos e nações, do Oriente aos sertões, puderam comer melhor do mistério do Natal, do Verbo pão que alimentaria os famintos do mundo, não mais sentiriam fome.

O pobre Menino e sua família continuaram a andar pelo mundo até a morte de Herodes, quando puderam voltar a Nazaré. Mas o sertão ficou marcado por sua peregrinação, ainda hoje lembrada nas marcas da pedra que mostram a concretude do mistério, como a manjedoura que o acolheu ao nascer.

Como o feno da manjedoura que o envolveu sob a luz da estrela guia, o sertão também cintilava a luz do Verbo e o sol de um novo tempo se anunciou. Hoje, autos de Natal e pastorinhos relembram a encarnação do Verbo, que teve a coragem de sair ainda Menino pelo mundo.

Volta, oh Menino, aos sertões e lhe traga o verde da vida para que a caatinga se torne o feno que lhe aqueceu, como aquece o coração de milhares de meninos à espera da Boa Nova, que renasce cada vez que as crianças pisam nas mesmas pedras em que pisaste e relembram que se Deus se fez Menino, nunca mais estarão sós.

Ciro Leandro Costa da Fonsêca
Doutorando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Membro do GPORT (Grupo de Pesquisa de Literaturas de Língua Portuguesa)
e Bolsista da CAPES. Associado da Academia Marial de Aparecida.
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