Vicente Renuncio Toribio

O DISCÍPULO HÁ DE SER CÓPIA VIVA DO MESTRE

Se padre Girón era o tipo do asceta, abstraído das coisas e voltado para dentro de si, onde encontrava a Deus, padre Vicente Renuncio foi, bem ao contrário, um homem ativo, que consumia a vida a serviço do próximo e da família religiosa à qual pertencia.

Vicente Renuncio Toribio nasceu em Villayuda, pequeno povoado a quatro quilômetros da capital, Burgos, e aos pés de uma montanha não muito alta, em cujo cimo se ergue o mosteiro da Cartuxa de Miraflores. Nasceu aos 11 de setembro de 1876. Estava, portanto, com 60 anos quando entregou sua vida ao Senhor; mas 60 anos que não eram o começo da velhice, e sim uma vigorosa maturidade, pois se mantinha tão robusto e ágil que nada nele denunciava o crepúsculo da vida.

O pai de Vicente chamava-se Nicasio Renuncio Manzanedo, nome que padre Renuncio haveria de adotar durante a perseguição, mas sem resultado positivo. Ignacia Toribio era o nome da mãe. A casa estava sempre aberta à caridade; todo aquele que necessitava de algo recorria com confiança ao senhor Nicasio e à dona Ignacia, pois ali se socorria a todos. A ninguém se negava nada.

Aos três anos foi acometido de grave enfermidade, e dado como caso perdido. O médico não lhe receitava mais nada. “Que coma o que lhe apeteça e que morra contente o pobrezinho”, dizia. Mas foi exatamente por comer coisas estranhas entre si, como leite, vinagre, frutas, todas juntas e de uma vez, e por ser muito ativo desde pequeno, é que acabou se curando.

Na escola, não foi nenhum talento, como ele mesmo registrou em seus apontamentos biográficos. Já no catecismo, ninguém sabia mais que ele. Um primo seu quis ensinar-lhe latim; mas latim era o que menos lhe entrava na cabeça. Quiseram mandá-lo para os Jesuítas; estes, porém, não o aceitaram dizendo que dele pouco se podia esperar. Isso o deixou bastante desconsolado, pois lhe parecia desfeito seu sonho de ser sacerdote.

Dizem, entretanto, que Deus, se fecha um caminho, abre outro. Foi o que aconteceu. Em uma missão pregada pelos Redentoristas em Agés, vilarejo vizinho de Villayuda, um missionário simpatizou com Vicente e lhe propôs levá-lo para o seminário. Vicente não queria outra coisa, e em 13 de setembro de 1889 estava entrando no El Espíno.

Anos mais tarde, também a irmã caçula de Vicente, Pilar, entraria para a vida religiosa no mosteiro Beneditino de Palácios de Benaver. Ela conta que Vicente era sério, mas nunca se aborrecia com nada. Quando ela ficava aborrecida, ele, com palavras mansas e com carinho, fazia com que descarregasse o cenho. E ele seria sempre assim, inalterável em sua mansidão.

Com o passar do tempo e em contato com o mundo, foi mudando um pouco o temperamento. Sem deixar de ser sério, prestativo e atencioso, foi deixando para trás o camponês sisudo, e se tornou  expansivo e alegre.

No Noviciado, que fez de 1894 a 1895 em Nava Del Rey, chamava-se frater Renuncio, e o passou sem maiores dificuldades. Oração e sólidas virtudes era o que melhor harmonizava com seu gênio.

Em 8 de setembro de 1895, fez sua profissão religiosa e logo se transferiu para Astorga para cursar os estudos maiores. Talento, como já se disse, ele não tinha muito. Mas com empenho, aplicação e oração sempre, conseguiu chegar ao sacerdócio, recebendo a ordenação aos 23 de março de 1901.

No começo da vida de padre foi missionário e, pouco tempo depois, destinaram-no a ser professor no El Espino, cargo que ocupou de 1902 a 1906. Em seguida volta a ser missionário. Embora lhe faltassem as qualidades de bom orador, como memória, palavra fácil, gestos, sobravam-lhe piedade sólida, seriedade, aplicação e objetividade no trabalho, além do zelo pelas almas e sua característica bondade e facilidade no trato das pessoas. A todos que a ele acorriam em busca de conselho para enfrentar os problemas do dia-a-dia, era homem que sabia dar soluções acertadas.

Sai das missões em 1909, e embora ainda pregue alguma missão aqui e acolá, nunca mais retornou efetivamente a esse campo. Voltou a ser professor e auxiliar do Diretor no Seminário, consultor, administrador de vários departamentos, inclusive da revista El Perpetuo Socorro, e, por último, já fazia alguns anos que estava em Madri, na Comunidade do Perpétuo Socorro, como Prefeito do Santuário.

No dia 18 de julho, abandonou o convento e refugiou-se na casa de Miguel Huidobro, local não muito apropriado para esconder-se, pois seu dono era de atuação direitista e, por isso, também buscado pelos vermelhos. Poucos dias depois fizeram uma vistoria ali, mas padre Renuncio estava fora no momento. Havia saído para celebrar missa, o que fazia praticamente todos os dias, apesar de ser advertido por todos do risco que isso significava. Ao voltar, foi informado da vistoria e não quis entrar. Dirigiu-se à casa de umas conhecidas suas, as senhoritas de Salinas.

Não se sabe exatamente quantos dias permaneceu ali, mas o certo é que no dia 24 estava na casa de dona Dolores Rosado, onde ficou até 8 de setembro. E continuava saindo sempre para suas missas e para visitar famílias conhecidas, no exercício de seu ministério sacerdotal.

Dona Dolores arrumou para ele uma pensão na rua Malasaña, julgando que ali estaria mais seguro. Foi, no entanto, sua perdição. Surpreendido sem documentos, foi levado à Comissaria do Distrito de Chamberi e, dali, à Direção Geral de Segurança. No dia seguinte, levaram-no para a prisão Modelo, galeria 2.

Dos companheiros de prisão conservam-se vários testemunhos por escrito, que falam de seu espírito afável, bondoso, serviçal, sempre de bom humor, de caridade inesgotável, sobretudo ouvindo confissões no pátio da prisão ou nas celas, e distribuindo alimentos e remédios que seus amigos lhe levavam.

Dia 7 de novembro de 1936 foi o dia da grande retirada de  prisioneiros, de várias prisões, para, como diziam, serem transferidos para o cárcere de Alcalá: 970 da prisão Modelo; 175 de Santo Antão; 200 da prisão Nova; outros 200 da prisão de Porlier, e alguns mais, totalizando 1600. Na verdade, porém, destes, só 300 chegaram à prisão de Alcalá. Os demais 1.300 foram fuzilados na noite do mesmo dia 7 de novembro, na grande matança de Paracuellos del Jarama. Entre eles, o padre Vicente Renuncio, a respeito de quem , a partir daí, nunca mais se soube nada.

Ao ouvir seu nome na lista de chamada, levantou-se e, emocionado, diante do padre José Machiñena, seu Superior e companheiro de prisão, renovou os votos religiosos. Padre Machiñena animou-o a que estivesse preparado e, se fosse o caso, que oferecesse a Deus sua vida pela Igreja, pela Congregação e pela Espanha. Com ânimo, e marchando resolutamente, falou padre Renuncio em alta voz: “Ofereço minha vida pelos Confrades da Província, pela Congregação, e por nossa desventurada pátria”. Padre Renuncio foi a última vítima redentorista da perseguição vermelha espanhola.

Descrever toda a sanha e desumanidade dos milicianos, e dos episódios desse dia é quase impossível. Aqui estão, entretanto, alguns traços retirados dos relatos do padre Machiñena:

“Naquele dia, saímos tristes para o pátio... Em surdina, comentava-se o acontecimento do dia. Uns diziam que tinham ido para Alcalá, outros, que para Chinchón... Um comandante amigo meu acercou-se de mim e, com toda reserva, transmitiu-me a versão que tinha ouvido de um Oficial de Prisões: que os que saíram no primeiro carro haviam ido para Alcalá, e que aos demais os haviam assassinado todos nos arredores de Madri, e que muitos deles haviam sido enterrados vivos. E acrescentou: “Quando se souber toda verdade causará horror e espanto.”... Despojando-os de tudo o que tinham de pessoal e amarrando-lhes as mãos empurravam-nos para o carro... Assim foram levados ao local da execução. Uma vez ali, colocados à beira de valas, amarravam-nos de novo, em grupos de três ou quatro, que, ceifados pelas metralhadoras, iam caindo nas valas, arrastando uns aos outros, uns mortos, outros ainda vivos. Esses detalhes, eu mesmo os ouvi de um diplomata de Embaixada. O Corpo Diplomático teve notícias e até informações detalhadas dos atos monstruosos a que faço referência, mas só se ouviu a voz de protesto do representante do Governo Norueguês, que caiu no vazio. Os marxistas, impotentes para conter o avanço dos nacionalistas, vingavam-se de suas derrotas assassinando aos presos, que não haviam cometido outro crime senão o de não pertencer à Frente Popular.”

Sóror Pilar, a irmã de padre Renuncio, havia composto fervorosa oração em forma de poesia, rogando a Deus e à Virgem que livrassem o irmão das mãos dos perseguidores. Mas, ao inteirar-se de seu martírio, compôs esta outra: 

   Que o discípulo há de ser

   do Mestre cópia viva.

   De ser irmã de um mártir

   estou mui enobrecida;

   e por isso hoje, a teus pés,

   te dou mil graças, rendida

   por ter sido meu irmão

   uma vítima escolhida.

 

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