Vocação: chamado que provoca decisão e entrega

Na raiz daquela experiência que denominamos como “vocação” há um dado antropológico fundamental: o ser humano só encontra sua realização quando se autotranscende. Por autotranscedência compreendemos o movimento segundo o qual o ser humano rompe com o seu “eu solitário”, sua autorreferencialidade, se perguntando sobre a finalidade da vida e abrindo-se para o outro, seja esse outro Deus, uma pessoa, uma causa, uma questão fundamental que atravessa sua existência.

Sem esse movimento de saída de si, de ultrapassagem, em busca de um sentido que possibilita ir mais além, conferindo unidade e consistência para a vida, o ser humano permanecerá fechado em si mesmo, limitado em suas percepções e perspectivas de mundo.

Esse dado antropológico encontra correspondência na antropologia bíblica, segundo a qual o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,16-28). Ser criado à imagem de Deus significa que o Criador criou o ser humano com a capacidade de trazer em si uma abertura para o infinito, dotou-o da possibilidade de se autotranscender, que lhe possibilita dar uma orientação para vida em direção àquilo que o realiza e o ajuda a desabrochar todo seu potencial: “O Deus da vida tem, para cada vivente, um plano de amor, que, no caso da criatura humana, passa por um chamado e um livre resposta de aceitação ou de rejeição” (Bruno Forte).

Ser imagem de Deus implica, portanto, em ser um alguém único, um parceiro livre no diálogo que Ele deseja estabelecer, ter uma atitude responsorial diante do Mistério que funda a existência e dá consistência ao mundo.

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Da parte do ser humano, a realização dessa autotranscedência ao qual ele é permanentemente chamado pode ser alcançada pela vida da autenticidade, isto é, quando livremente se toma posse daquilo que nos individua, do que nos torna únicos na obra criada. Como recorda Bruno Forte: “Nenhum de nós é um número perante o Eterno. Para cada ser humano, Ele tem pensamentos de paz e de beleza”.

A realização da vocação como busca da autenticidade é tarefa nunca concluída, porque está sempre sujeita a novas descobertas, novas revisões e interpretações. De igual modo, se apresenta constantemente ameaçada, já que sempre há o risco de se preferir a via da inautenticidade, quando nos afastamos de nossa essência verdadeira, seja por conta dos condicionamentos dos contextos nos quais nascemos e vivemos, seja pelas expectativas que os outros criam sobre nós ou por nossa própria recusa em empreender um caminho de autoconhecimento e autorrealização.

Frequentemente a vocação é compreendida como uma inclinação, uma aptidão, um talento natural para exercer algo. Porém, seu significado se apresenta mais profundo e abrangente quando se tem em vista o duplo movimento de autotranscedência e autenticidade, ou conforme a linguagem bíblica, o apelo divino que interpela o ser humano e o faz sair em direção a sua verdadeira imagem, ao seu “eu autêntico”; e a reposta humana que concretiza esse desafio de se lançar na descoberta do que dá sentido à vida, tornando cada existência uma experiência irrepetível.

A resposta positiva que damos a esse apelo será traduzida concretamente nas diversas vias, que a criatividade divina dispôs para estruturar nossa existência. Apesar da diversidade de caminhos e das variadas respostas, “não se trata de inventar-se, criar-se do nada, mas da descoberta de si mesmo à luz de Deus e de fazer florescer o próprio ser” (CV n. 257).

Sendo uma realidade que abarca a totalidade da vida, necessitando assim da colaboração ativa do ser humano, a vocação exige decisão e entrega. Em relação a primeira exigência, é preciso recordar que a vocação não é um destino fatal e anônimo que nos é imposto de fora, mas se apresenta sempre como apelo a nossa liberdade, como um convite a uma aposta decidida. Lembra o Papa Francisco que o dom da vocação “não será um dever imposto por outro de fora, mas algo que te estimulará a crescer e a optar para que esse presente te amadureça e se transforme em dom para os outros” (CV n. 289). Há que se posicionar diante do chamado, a favor ou contra, pois “os dons de Deus são interativos e, para apreciá-los é preciso arriscar” (CV n. 289).

Porém, essa decisão não se faz às cegas ou inconscientemente, mas em espírito de abertura e discernimento. Em outras palavras, numa atitude de entrega e docilidade ao sopro do Espírito, que nos ajuda a superar nosso ponto de vista estreito e parcial, abrindo-nos a um horizonte de maior compreensão e autenticidade. Se a decisão coloca ênfase na dimensão ativa da vocação, a atitude de entrega ressalta a dimensão receptiva da vocação, isto é, esse dom não depende exclusivamente de nós, nem é apenas fruto do nosso esforço, mas é oferecido, sujeito ao nosso consentimento e acolhida: “É a grande aventura do ser humano, ser que recebe, principalmente que recebe o amor das mãos de outrem [...] E o outro é aquele que desperta meu desejo [...]” (Adolphe Gesché).

Nesse breve percurso no qual refletimos sobre a vocação no duplo movimento da autotranscedência e da autenticidade, vimos que quanto mais o homem se abre ao Mistério, que o homem e a mulher de fé nomeiam como “Deus”, mais se sente interpelado a descobrir-se a si mesmo, a empreender um caminho de autenticidade, a realizar uma destinação única e irrepetível, traduzida concretamente na capacidade de doar-se, sair de si e ir ao encontro do outro.

A vocação se apresenta como uma aventura inacabada, sujeita a decisão e entrega, na qual se joga a iniciativa do bem querer divino e a liberdade do ser humano.

Pe. Rodrigo Costa
Missionário Redentorista