Artigos

Maria na plenitude dos tempos – A encarnação

Escrito por Pe. José Ulysses da Silva, C.Ss.R.

03 JAN 2013 - 00H00 (Atualizada em 22 OUT 2025 - 11H48)

Reprodução/Shutterstock

maria_7

“Mas, quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os súditos da lei e nós recebêssemos a condição de filhos de Deus” (Gl 4,4)

Esse texto está na Carta de São Paulo aos Gálatas. A Galácia, hoje Turquia, fazia parte do Império Romano e havia sido evangelizada por São Paulo. Sua carta alerta contra a influência dos cristãos judaizantes, que insistiam em obrigar os cristãos gálatas, não judeus, a observarem a Torá, começando pela circuncisão.

Isso criou divisão na Comunidade. Por isso, São Paulo defende que a salvação vem pela graça de Jesus e não pela lei. Ele reafirma que o batismo, e não a circuncisão, é o sinal que marca o discípulo de Jesus, independentemente de sua raça e origem. Ninguém compra a salvação com boas obras e ninguém pode tirar a libertação da lei dada por Jesus.

A relação salvífica com Jesus e o amor fraterno oferecem o critério da liberdade cristã, que jamais pode ser sufocada por outras obrigações impostas pelas tradições ou pelas leis. Por isso, o que importa é viver no Espírito, de quem brota a verdadeira liberdade.

O capítulo 4 fala exatamente da liberdade dos filhos de Deus, conquistada por Jesus. Somos todos herdeiros das promessas de Abraão, anteriores à Torá dos judeus. Contudo, enquanto éramos menores de idade, ficamos sujeitos a leis e crenças, como escravos. Porém, quando Deus envia seu Filho, n’Ele e por Ele, todos nós, judeus e não judeus, recebemos a dignidade de filhos de Deus e nos tornamos livres dessa escravidão.

Plenitude dos Tempos

O que significa “plenitude dos tempos”? Em grego, o termo é pléroma. Ambas as expressões produzem o efeito sonoro de preenchimento completo. Trata-se do ápice da história humana? De modo algum.

Não se trata de uma plenitude cronológica, mas de plenitude do kairós, isto é, do tempo de Deus. É a iniciativa gratuita de Deus que confere ao tempo sua plenitude. Por outro lado, a Encarnação se insere em um tempo e história concretos, como certamente São Paulo quis afirmar.

São Lucas deixa claro o contexto histórico em que aconteceu o nascimento de Jesus. O imperador romano era César Augusto, Quirino era governador da Síria, Herodes o Grande era o rei da Judéia. Tempos e lugares bem definidos.

Não se trata de uma narração qualquer, mas de um acontecimento histórico. São Paulo nota que Jesus nasceu de uma mulher, ou seja, não irrompeu do céu, mas passou pela concepção e parto como toda pessoa concreta.

Dentro desse contexto histórico, o império romano encontrava-se em consolidação política, econômica e sócio-cultural, sem tantas guerras de conquista. Amadurecia um sistema de direito que conferia cidadania e segurança a todos, independentemente de sua religião ou costumes. Bastava a sujeição ao imperador e o pagamento de impostos para usufruir da “pax romana”.

Um sistema eficaz de estradas e rotas marítimas facilitava comunicação e transporte. A língua grega “koiné” era popular em todo o império. A filosofia grega criou uma elite intelectual, e a tecnologia romana garantia segurança e bem-estar.

O mundo judeu oferecia uma estrutura religiosa sólida, baseada na Lei e nos Profetas, com resistência suficiente para não se dobrar diante de influências externas. Suas tradições, livros sagrados, sinagogas e presença em toda a diáspora faziam do povo judeu uma referência religiosa.

Já havia um resto de Israel, amadurecendo sua esperança messiânica, sinalizado por Quirino e pelo povo simples, como Isabel e Zacarias, Maria e José. Eles viviam uma espiritualidade próxima de Deus, capaz de ler os sinais dos tempos.

Possivelmente, esperavam liberdade, misericórdia e paz. Mais do que cultos e leis, havia um anseio por vivência moral e espiritual. A história e os profetas relativizavam o valor dos cultos oficiais, apelando para a aliança com Deus e a fidelidade à oração.

Nascido de Uma Mulher

A expressão paulina ressalta a humanidade de Jesus, assumida de uma mulher concreta. Essa mulher é Maria, presente nos Evangelhos da Infância de Lucas e Mateus, participando de todos os acontecimentos: Anunciação, Magnificat, nascimento de João Batista e de Jesus, Apresentação no Templo, visita dos Magos, fuga para o Egito e crescimento em Nazaré.

A expressão “nascido de uma mulher” remete à promessa de Gênesis 3,15, quando Deus diz à serpente que haverá uma descendência que a ferirá. A Encarnação de Jesus penetra a natureza humana fragilizada pelo pecado, restaurando-a. “O Verbo se fez carne e veio morar no meio de nós” (Jo 1,14).

É de Maria que Jesus recebe sua natureza humana: gostos, saúde, aparência, sensibilidade e forma de ser. Ela oferece sua vontade e corpo por inteiro, tornando-se a matéria-prima do mistério da Encarnação, físico, psicológico e espiritual. Sua virgindade sela a origem divina de seu Filho.

Nessa natureza humana, a divina se humilha, aniquila-se, despoja-se para ser igual aos homens, exceto no pecado, obedecendo ao Pai até a morte na cruz. Santo Afonso descreve: “O Verbo eterno desce ao seio de uma Virgem, comparado ao seio de Deus, é um horror; ali é criatura, pequeno, fraco, padecente, servo, inferior a seu Pai.”

Essa kénosis é histórica. Como Santo Afonso explica, ao aniquilamento do Verbo corresponde a elevação do ser humano: “O Filho de Deus se fez pequeno para nos fazer grandes; ele deu-se a nós, a fim de que nós nos demos a Ele…” (Fl 2,6-11).

Encarnação e Redenção

Jesus é o nosso Santíssimo Redentor. Desde a Encarnação, Ele realiza a Redenção. A festa do Natal é, portanto, de Redenção, não apenas recordação. A oblação de Jesus ao Pai começou na Encarnação e se prolonga eternamente, culminando na cruz e na Ressurreição.

O papel de Maria é ativo na Encarnação e na Redenção. Seu “Fiat” a envolveu na missão do Filho desde a concepção até a parusia, completando a obra redentora.

Maria já inicia a maternidade eclesial desde a Encarnação. O Filho de Deus vive cada segundo como filho de Maria e José, em união com sua natureza divina. Sua vida humana e divina coexistem em perfeita harmonia, com Maria presente e ativa.

Maria é nossa Mãe, assim como foi mãe de Jesus. Sua maternidade eclesial abrange todos que aceitam ser descendentes do novo Adão, nova Eva, colaborando na missão de Cristo desde a Encarnação até a plenitude dos tempos (Lc 1,38; Hb 10,9; Col 1,12-20).

Maria no Processo de Encarnação do Filho

As primeiras comunidades enfrentaram resistência ao mistério da Encarnação. Surgiu o “docetismo”, negando a realidade da natureza humana de Jesus. O dogma da maternidade divina de Maria afirma a humanidade plena do Verbo eterno.

Lucas observa Maria guardando tudo em seu coração (Lc 2,19.51). Isso indica consciência do segredo messiânico de seu Filho, transmitido pelo Anjo, e a necessidade de paciência e sabedoria para esperar o momento certo de Jesus.

Maria visita Isabel, cheia de alegria e consciência da ação de Deus. O Verbo em seu ventre já provoca a missão de salvação em João Batista. Maria é a primeira colaboradora da Encarnação, levando o Filho a todos os povos.

Na perda e encontro de Jesus no Templo (12 anos), o processo pedagógico da consciência divina do Filho se revela. Maria compreende a nova realidade de Jesus como plenitude da divindade, não dependente de templos ou cultos.

No casamento de Caná, Maria intervém para manifestar a unidade indissolúvel entre o divino e humano em Jesus. Ela provoca o sinal que revela o Filho como o Deus-conosco, iniciando sua missão de presença entre a humanidade.

Concluindo

A Encarnação inaugurou a “plenitude dos tempos”. Maria surge como representante da humanidade, ponto de origem de um novo Povo de Deus, colaborando inseparavelmente com o ato redentor de Cristo (Lc 2,52).

A Encarnação continua com a mediação de Maria. Ao “Eis que venho para fazer a tua Vontade” de Jesus, corresponde o “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra” de Maria. Ela permanece nossa Mãe e colaboradora até a parusia, quando tudo será reconciliado em Cristo.

Devemos contar com a intercessão de Maria, repetindo com Santo Afonso: “Não te esqueças de mim, pecador; faz que meu coração ame quem sempre me amou” (canção “Viva Maria”).

“O Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem!’ Quem ouve também diga: ‘Vem!’ Quem tem sede venha, e quem quiser receba gratuitamente a água viva… Amém! Vem, Senhor Jesus! (Ap 22,17.20).


[1] Santo Afonso M. de Ligório, Encarnação, nascimento e infância de Jesus, Meditações para o tempo do advento, IV. pg. 126, Ed. Vozes 1946.

[2] S. Afonso M. de Ligório, Encarnação, nascimento e infância de Jesus, I Meditações para o tempo do advento, V. pg. 128, Ed. Vozes 1946.

[3] S. Afonso M. de Ligório, Encarnação, nascimento e infância de Jesus, II Meditações para o tempo do advento, III. pg. 159-160, Ed. Vozes 1946.

[4] Santo Afonso M. de Ligório, citado por Colin, Louis, Alphonse de Liguori, Doctrine Spirituelle 2, pg. 76, Ed. Salvator – Mulhouse, 1971.

Seja o primeiro a comentar

Os comentários e avaliações são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do site.

0

Boleto

Carregando ...

Reportar erro!

Comunique-nos sobre qualquer erro de digitação, língua portuguesa, ou de uma informação equivocada que você possa ter encontrado nesta página:

Por Pe. José Ulysses da Silva, C.Ss.R., em Artigos

Obs.: Link e título da página são enviados automaticamente.

Carregando ...