Por Ana Alice Matiello Em Grão de Trigo Atualizada em 02 OUT 2017 - 12H49

O matrimônio entre o céu e a terra

Casamento Juventude - Reprodução

27º DC Mc 10, 2-16        

 

E então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana”.

No diálogo O Banquete de Platão, Aristófanes, um dos maiores comediógrafos grego, fala sobre o amor a partir de uma narrativa mitológica. O amor “é ele com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero humano”. Mas é preciso entender a natureza humana para se compreender porque o amor é a sua cura. “Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade (...)”, o andrógeno era o terceiro gênero que continha tanto o masculino, quanto o feminino, “porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; (...) mas voltaram-se contra os deuses, (...) Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: ‘Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, (...) eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós (...)”.

 A raça humana é criada a partir da divisão do gênero andrógeno, desde os tempos mitológicos, a divisão simboliza uma fraqueza, pois há uma ausência, uma falta da unidade primordial. A busca dessa unidade passa a ser então o anseio mais profundo dos homens. Para Aristófanes, o feliz acaso do destino através do deus do amor poderia curar a natureza humana da ausência da sua metade, pois a união dada no vínculo amoroso restituiria a natureza. A percepção de que pesa na realidade humana um princípio de divisão e contradições foi compreendida, na mitologia grega, como o poder do Destino e do capricho dos deuses. Na filosofia, a ética aristotélica do meio termo buscou fundar as ações humanas teleologicamente para o bem, com o objetivo de prover continuidade e permanência para a vida humana sobre uma realidade permeada de ambiguidades que desafiavam os conceitos de justiça e verdade. O deus do amor no diálogo de Aristófanes é a expressão mítica desse caminho para a vida plena.

No relato bíblico, a divisão primordial da criatura com o Criador é simbolizada pela queda. O vínculo do homem com a mulher sofre dessa divisão igualmente. O que no princípio era “osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2, 23), se converte na consciência dessa separação. A vergonha de Adão e Eva é o reconhecimento dessa ruptura, quando Deus pergunta “Onde estás?” (Gn 3, 9), não é sobre um lugar físico, mas moral em relação a Deus. Deus os chama, porque já não estão mais próximos – a criação se distanciou, ela se enveredou pelos caminhos do bem e do mal. Em consequência disso o homem e a mulher também se distanciaram, a nudez significa que agora não estão mais revestidos um do outro, pois cada um <<é-capaz-de>> divorciar-se do princípio criador que os unia numa só carne.

Uma vez o homem inserido na história cheia de tribulação decorrente da desunião com o princípio criador, a lei e o contrato ético-religioso, na tradição judaica, receberam um status tão proeminente sobre o seu povo que acabaram confundindo-se com a própria vondade de Deus. Quando Jesus é questionado pelos fariseus sobre o direito do homem de repudiar a mulher e a carta de divórcio permitida por Moises, Jesus diz: “Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa lei”. O contexto histórico da lei favorecia o homem no aspecto jurídico e social, ele poderia repudiar a mulher por qualquer motivo frívolo, a carta de divórcio, ao menos, garantia à mulher a separação legal. No entanto, Jesus quando questionado sobre o matrimônio, não responde a partir da lei dos homens que são limitantes no seu contexto cultural, mas a partir da lei de Deus, que ressignifica toda o sentido histórico da vida humana incluindo as categorias estético-ética e religiosa.

Jesus ressignifica o sentido do matrimônio quanto traz à luz o princípio da Criação para reafirmar a indissolubilidade do vínculo do amor. O matrimônio com o Cristianismo intensifica a consciência do maior mistério de Deus sobre a Criação, porque ele está intimamente ligado ao mistério da Encarnação, do matrimônio de Deus com os homens na Nova Aliança. A lua que no tempo mitológico grego significava a unidade por conter tanto da terra quanto do sol é, na tradição cristã, o domínio de Maria. “Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas”. (Ap 12, 1). O seu ventre (corpo) é o princípio feminino da terra que está revestido de sol, isto é, concebido do Deus Eterno. Maria tem a lua sob seus pés, porque possui em seu ventre o matrimônio entre o Eterno e o temporal.

Que divórcio do coração não será curado pelo matrimonio do eterno amor? Muito mais profundo que a lei, que une e separa por um imperativo exterior e contextual, o matrimônio no Cristianismo é um dom, um movimento da interioridade capaz de manter sempre aberta a possibilidade do amor, porque é uma dinâmica entre três pessoas. O homem e a mulher se reconhecem um no outro porque se suportam no mesmo e único fundamento. “Por isso, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher; e os dois não serão senão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu” (Mc 10, 2-16). O matrimônio, desse modo, está muito além de uma questão puramente estética-moral sobre a vida humana, do contrário, a lei bastaria, mas enquanto ela mata, o espírito vivifica, o amor cura.

Ana Alice Matiello
Associada à Academia Marial de Aparecida. Mestra em Ciência da Religião – UFJF.

                          

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