Quaresma – Páscoa: passar da ‘casa da escravidão’ para o Templo de Deus!
Não é fácil integrar-se no espírito da Quaresma. Ela nos pede rever a obediência aos mandamentos de Deus. Quem tiver coragem de se examinar vai se sentir escravo de muitas infidelidades, embora sejam só 10 os mandamentos cristãos. Em verdade, eles modelam a própria organização civil pacífica e justa. “Eu sou o Senhor teu Deus que te tirou da casa da escravidão” (1ª. Leitura, Êxodo 20). Assumindo-os no espírito de Jesus Cristo que veio aperfeiçoar o cumprimento da Lei (Mt.5,17) o cristão é como o surfista ousado que cavalga as ondas com sua prancha. Discípulo-missionário ele atira-se ao impulso da conversão quaresmal porque precisa vencer e superar o vai e vem das ondas do egoísmo no ter, no poder e no prazer. Caso contrário, sua convivência humana se perverte. O caminho quaresmal para a Páscoa é libertador e por si nos ensina a descobrir o poder e a sabedoria de Deus revelados na fraqueza do Cristo da cruz. (1Cor, 1,22-25: 2ª leitura). Digamos que a nossa “prancha” é a Campanha da Fraternidade. Seu lema: “Eu vim para servir” inclui tudo o que produz bondade, libertação e vida no diálogo e no convívio da sociedade.
Às vezes a mídia, o esquema das relações podem nos parecer uma “doce escravidão”, mas estão despojando a dignidade de milhões e milhões de pessoas com ambições, luxúria, vaidades e pecados. Ambições semeiam sofrimentos, injustiças e desigualdades vergonhosas. Governantes, legisladores e juízes aboletados nos altos cargos sangram as veias do erário público. Os três poderes republicanos (Legislativo, Executivo Judiciário) espalham por todo o Brasil servidores públicos e particulares, concursados, nomeados, assessores ou apaniguados políticos. Ramificam-se em centenas e centenas de milhares nas teias dos escalões municipais, estaduais e federais. Nas “bancas” do Estado laico o “deus” é o dinheiro. É mais ‘sagrado’ que o donativo nas igrejas, mas é vil instrumento de todos os vícios da politicagem. No lamaçal ético disputam-se os cacifes das benesses e privilégios políticos advindos da partilha da dinheirama recolhida da “coisa pública” (impostos). Enquanto isso, o povo mendiga seus direitos junto aos “balcões de negócios” dos postos de saúde, repartições de atendimento etc.
A Páscoa se avizinha com sua oferta de vida nova e vitória final contra as forças da injustiça, da maldade e do pecado. Forças presentes em nosso interior e nas relações com os outros nos trabalhos, negócios, projetos e opções diversas. A Páscoa cristã é a festa integral da beleza de viver. É a chance imperdível de quebrar cadeias: no egoísmo, na corrupção ética, no uso e abuso dos prazeres os quais nos escravizam ao ‘templo do consumo’ do mundo materialista.
No serviço do seu ministério Jesus indignou-se contra a exploração do próprio Templo onde ele fora também consagrado na Apresentação (Lucas, 2,22). A Páscoa era então o auge do culto bíblico no Templo. A festa da nação. O memorial da libertação do povo hebreu que nos inícios de sua cidadania fora escravizado no Egito antigo. Renovar a Aliança do povo com Deus era o sentido bíblico original da festa. O poder religioso e político corrompido desvirtuara o Templo e o seu sentido pascal. A ambição e interesses das lideranças civis e religiosas se infiltraram no culto. Profanou-se o Templo que deixara de ser o lugar sagrado, o espaço de encontro com Deus e se transformara num mercadão. Ora, no evangelho de São João o episódio da expulsão dos vendilhões e cambistas do Templo assinala o rompimento de Jesus com a páscoa judaica. O gesto enérgico de Jesus corrigiu a situação significando ainda no Evangelho o anúncio de uma nova Páscoa. Anúncio da ressurreição como fonte e auge do verdadeiro culto a Deus. Leia: João, 2, 13-25. (3º domingo da Quaresma- Ano B)
A intenção do texto salienta o contraste entre duas páscoas: a dos judeus e a de Jesus. Contrapõe de um lado a festa oficial controlada conforme os interesses financeiros e de poder explorando a religião submetida ao político e civil. De outro lado, a denúncia ética e a ação libertadora de Jesus movido por verdadeiro espírito religioso, consumido pelo zelo com as coisas de Deus (v.17). O Templo era o coração da cidadania gerada pelos 10 Mandamentos. O culto devia incutir e perpetuar a memória da libertação da ‘casa da escravidão’ e consolidar os 10 mandamentos do Sinai nos corações, nos costumes e nas leis. Bem cedo foi se transformando em meio de lucros e privilégios para as classes de poder. Coisa sempre condenada pelos profetas. Jesus fala e age: expulsa comerciantes, cambistas e confunde todo o aparato de mercado.
Há no seu gesto irado o anúncio enigmático e misterioso de outra Páscoa, outro Templo, este sim fonte incontaminada, única e definitiva do culto divino. “Destruí este Templo e em três dias eu o levantarei!” Referia-se Ele ao seu corpo em clara referência à ressurreição. O corpo humano de Jesus, destruído e ferido de morte pelos chefes judeus não ficaria na cruz e na sepultura. De fato, foi glorificado por Deus três dias após a morte. O gesto irado de Jesus alude à autoridade divina que lhe dá a santidade de Deus, o Pai. “Vós fizestes da casa de meu Pai uma casa de comércio.” (v.16). Só depois os discípulos souberam interpretar o fato como um sinal messiânico. Uma nova aliança com Deus seria celebrada no sacrifício do corpo de Jesus, na sua páscoa de sangue e não mais em templos feitos pelo homem. A partir dele o culto a Deus não depende mais de espaços sagrados, ritos e estruturas religiosas.
Enfoque mariano.
Naquele mesmo Templo, Maria e José levaram um dia o recém-nascido, Jesus, para consagrá-lo ao Senhor conforme estabelecia a Lei. Adoravam a Deus em espírito e verdade, cumprindo sua vontade. E nela participando do mistério de nossa redenção em Cristo. Desde a geração do Verbo em seu seio, a Virgem o carregou. Foi seu Templo terreno. Depois de nascido ela o amamentou, educou, serviu e foi a sua maior discípula. Isto nos leva a refletir como Nossa Senhora é importante para purificarmos o nosso culto nas intenções, ritos e práticas religiosas. Com sua ajuda maternal preparemos a nossa Páscoa com atitudes serviçais na comunidade.
Pe. Antonio Clayton Sant’Anna, C.Ss.R.
Diretor da Academia Marial
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