Espiritualidade

Quais as minhas responsabilidades sobre o próprio corpo e o corpo do outro?

A arte de conservar um tesouro em “vaso de argila” (cf. 2 Cor 4,7)

Padre Luiz Gonzaga Scudeler, C.Ss.R.

Escrito por Padre Luiz Gonzaga Scudeler, C.Ss.R.

08 NOV 2021 - 08H40 (Atualizada em 08 NOV 2021 - 09H24)

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Contextualizando a pergunta

Estamos em um momento cultural que não só revela a percepção de que somos um corpo que deve ser valorizado, mas que apresenta uma série de dificuldades para vivenciar o seu valor pela a ambiguidade que ele traz.

Recentemente, vivemos dois momentos esportivos que colocam em cheio a ambivalência de nossa relação com aquilo que chamamos de corpo. As Olímpiadas e a Paraolimpíadas mostraram-nos dois tipos de atividade esportiva. Em ambas, os atletas buscam superar os limites do próprio corpo. Nas Olimpíadas, contemplamos corpos bem proporcionados e adequados para uma prática esportiva plena. Com ele, busca-se atingir o máximo de perfeição atlética e quebrar recordes. Noutra, temos corpos mutilados ou com próteses, cujo objetivo é superar os limites da deficiência corpórea.

Em ambos os tipos de atletas, subjaz uma realidade de que somos o corpo que temos. Apesar do corpo, por si só, constituir uma limitação às nossas aspirações, alimentamos desejos de superar tanto a sua fragilidade quanto os limites naturais.

A fragilidade se apresenta na forma de doenças, de dor, cansaço, fadiga. Tudo isso se refere ao funcionamento interno do corpo como um complexo conjunto de órgãos cuja funcionalidade visa dar-nos mobilidade, visibilidade e situar-nos no tempo e no espaço do nosso contexto existencial.

Essa nossa configuração no tempo e no espaço revela-nos que trazemos “um tesouro em vaso de barro”, segundo a expressão de São Paulo. Ele, usando linguagem atlética, comenta:

“Somos atribulados por todos os lados, mas não esmagados; postos em estrema dificuldade, mas não vencidos pelos impasses; perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados” (Cf. 2Cor 4,8-9).

E o apóstolo vai mais longe:

“Incessantemente e por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo” (Cf. 2Cor 4,10).

Shutterstock/ Luis Molinero
Shutterstock/ Luis Molinero

Entre ter um corpo e ser corpóreo

Comumente falamos do corpo como algo que se possui e do qual julgamos ter a posse. Isso gera, muitas vezes, uma atitude ambígua com respeito ao corpo. Julgamos ser donos absolutos do corpo que temos.

É preciso ter presente que o corpo é um dom que nos dá consciência de ser corpóreos. Isto é, o corpo é o meio pelo qual percebemos a nossa corporeidade. A qualidade de ser e se manifestar através do nosso corpo.

Temos que reconhecer: não podemos estar, ao mesmo tempo, em espaços diferentes nem ocupar o espaço de outro corpo. Apesar da nossa locomoção e atuação se darem sob as coordenadas temporal e espacial, os diversos momentos que vivemos em situações diferentes dão-nos a sensação de criar uma trama histórica à nossa existência, pois a sucessividade de tempo e de lugar vão sendo arquivadas em nosso sistema memorialista do cérebro.

Assim, o nosso estar no mundo através do nosso corpo é o meio instrumental que nos permite arquivar nossas experiências pessoais e relacionais com os outros. É através de nosso corpo que nos relacionamos com as pessoas. Daí a diferença entre a percepção que temos de nosso corpo e a experiência que outros fazem de minha presença corporal.

É através dele que nos comunicamos e expressamos nossos sentimentos. Nesse sentido, o nosso corpo fala. Sua postura é reveladora do que estamos sentindo. Nós extravasamos o que vai no nosso interior através de nossas expressões corporais. O corpo não é uma máquina; o seu funcionamento se dá través de um complexo sistema de glândulas que independe da nossa vontade, mas é decorrente dos estímulos extremos que passam pelos nossos sentidos e geram reações, sensações e sentimentos.

Leia MaisQuestões de bioética no campo da reprodução humanaO conjunto de sensações e sentimentos corpóreos qualificam o que chamamos de corporeidade, que é a capacidade de arquivar as nossas experiências corpóreas, as sensações que sentimos positivas ou negativas, prazerosas ou dolorosas.

E aqui cabe um outro aspecto de nossa responsabilidade: saber assimilar e purificar o que arquivamos em nossa memória. Não se trata de negar o que foi sentido, mas saber vivenciá-los de forma que estejam a serviço do pensamento sadio e respeitoso (Bernard Häring, p. 533). É fundamental educar e higienizar a nossa imaginação e as nossas fantasias para uma relação responsável com as coisas e as pessoas.

Uma terceira consideração correlacionada à anterior, é o fato de que damos valor ao dizer: “tenho um corpo”. Emerge uma sensação de que estamos fazendo referência a uma entidade interna que se vê na posse de algo que lhe dá uma configuração externa. Assim, não é possível olhar para o corpo como se ele fosse uma máquina, como se constituísse simplesmente um conjunto de peças que podem ser repostas. Claro que o nosso organismo tem órgãos e membros mais ou menos vitais, e outros que possuem funções importantes, mas não vitais em nossa estrutura orgânica.

Esse conjunto de estrutura orgânica viva é constituído por três elementos básicos: materialidade corpórea, psiquismo humano e alma espiritual. Essa trindade tem dinâmicas próprias, mas profundamente conectadas e que se deseja que sejam harmonicamente equilibradas. Basta haver uma disfunção numa delas para que o nosso estar no mundo se mostre perturbado com maior ou menor intensidade.

Evgeny Bakharev/ Shutterstock
Evgeny Bakharev/ Shutterstock

A nossa responsabilidade para com o nosso corpo

Somos responsáveis pelo nosso corpo em três aspectos, que consideramos separadamente, mas que formam uma totalidade.

Do ponto de vista físico, o cuidado com corpo passa pela alimentação e higiene corporal. Pois, a saúde corporal é uma realidade frágil. Bem como, o vigor do corpo é algo que vai diminuindo com a idade. Isso leva, ao que São Paulo exclama:

“Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?" (Rm 7,24)

À primeira vista pode parecer uma visão pessimista, mas que chama a nossa atenção para a fragilidade do corpo humano.

Do ponto de vista psíquico, o cuidado do corpo passa pela consciência de que há um princípio vital que anima o nosso corpo (Gn 2,7). As experiências relacionais que temos com as coisas, as situações e com as pessoas dão-nos a percepção de que o viver é uma sucessão de experiências positivas e negativas. É como uma luminosidade que transparece com brilho ou opacidade. São essas experiências que nos fazem vivenciar a satisfação de viver.

Tanto mais que da psique emergem as qualidades de empatia, simpatia, amizade, fraternidade, solidariedade, como também seus opostos: aversão, rancor, raiva, ódio. Enfim, uma plêiade de sentimentos que todos devemos saber administrar segundo um discernimento justo. São Paulo alerta, segundo a sabedoria popular:

“Não vos deixeis iludir: “as más companhias corrompem os bons costumes.” (1Cor 15,33)

Se devemos odiar o pecado, não podemos odiar o pecador.

Do ponto de vista do espírito, é necessário ter presente: “Se o primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão se tornou espírito que dá vida” (1Cor 15, 45)

Com isso, São Paulo nos alerta para o fato de que, pelo batismo e pela eucaristia, Cristo será engrandecido no corpo do cristão, pela vida e pela morte. Pois, “semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1 Cor 15, 44). Nós nos tornamos homens e mulheres espirituais.

Leia MaisComo a Igreja permite planejar o número de filhos?Nós nos tornamos templos do Espírito Santo, diz São Paulo (1Cor 6,19); com isso, ele não está a sugerir que desprezemos as nossas propriedades físicas e psíquicas. Antes, alerta que tudo deve passar pelo crivo do discernimento, em dois registros:

O primeiro é não se conformar com as coisas deste mundo, pois renovando a nossa mentalidade saberemos distinguir o que é bom, agradável e perfeito segundo a vontade de Deus. (Cf. Rm 12, 2).

O segundo é que em tudo reluza o amor para atingirmos a maturidade na prática da justiça e, assim, dar glória e louvor a Deus em Jesus Cristo e através do nosso corpo (cf. Fl. 1,9-11).

Escrito por
Padre Luiz Gonzaga Scudeler, C.Ss.R.
Padre Luiz Gonzaga Scudeler, C.Ss.R.

Missionário redentorista, doutor em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana – Pontifícia Universidade Lateranse de Roma e professor na Faculdade Católica de Pouso Alegre (MG).

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Por Redação A12, em Espiritualidade

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