Bobagem negar: mesmo quem não gosta tanto assim de futebol, acaba envolvido no clima da Copa do Mundo e até chega a sofrer quando assiste algum jogo da seleção brasileira. Tudo contribui para o tipo de "febre" que se instala na sociedade, febre, aliás, pré fabricada com objetivo financeiro.
É impossível que um evento do porte do Campeonato Mundial de Futebol não seja um belo negócio em que a Fifa, os jogadores, os técnicos, os ídolos do presente e do passado deixem de ganhar um bom dinheiro. Para pensar racionalmente a Copa do Mundo, o A12 ouviu o professor Mário José Dias, Coordenador do Curso de Filosofia da UNISAL, em Lorena (SP).
Padre César: Como a Copa do Mundo de Futebol deve ser olhada racionalmente?
"No Brasil nos acostumamos a pensar que somos o “país do futebol” e, por isso, há quatro anos muitos se encantaram e saíram às ruas para comemorar a escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo."
Professor Mário: Do ponto de vista emocional é sempre mais fácil entender como este período reúne multidão de pessoas, amigos e amantes do futebol. No Brasil nos acostumamos a pensar que somos o “país do futebol” e, por isso, há quatro anos muitos se encantaram e saíram às ruas para comemorar a escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo. Poucos foram os que fizeram as contas do quanto isso iria custar para o Brasil. Esse é o ponto da racionalidade, o outro lado da moeda da emoção a qual não nos permite olhar o Brasil real que não vai a campo: a desigualdade social, o desequilíbrio entre os custos investidos na construção dos estádios e os da saúde, educação, cultura... Por outro lado há de se pensar na projeção que uma copa do mundo expõe a nível internacional, nas possibilidades de aparecer na grande mídia, de trazer novos investimentos, negócios, turismo cultural... Podemos afirmar que o Brasil se tornou bem mais próximo do mundo com a copa. A racionalidade que encontramos na copa está no campo da política, que mais uma vez quer encontrar espaço para unir a emoção de um povo à figura do governante que vislumbrou este cenário de projeção mundial. No campo econômico, trazer novos investimentos, empregabilidade (mesmo que por um período temporário) e sustentabilidade de mercado. Sem querer exagerar, a própria emoção se tornou racional, ao padronizar os movimentos que antecedem cada partida, o ritual da entrada em campo dos times ao canto do hino nacional (até o Hino Nacional se tornou um ícone de uma emoção/paixão nacional).
Padre César: Que vai além do racional?
Professor Mário: É preciso pensar que o futebol deixou de ser simplesmente um esporte, um lazer na qual muitos apaixonados fixam seus olhares, reúnem suas economias para pagar um ingresso ou passam horas e horas com os olhares fixos na tela de uma televisão para vibrarem e, por vezes, exagerarem na dose do simples torcedor para o agressor fanático e violento. O esporte se tornou um grande negócio. Uma fábrica de ídolos e de propaganda. Um investimento publicitário e político. É bom para os negócios que o Brasil seja campeão do mundo. Quanto custa um jogador-mercadoria pós-copa de um país campeão? É bom para a política que o Brasil seja campeão? O torcedor vai encontrar sinergia naquele time e, os mais antigos, poderão “afastar o fantasma da copa de 50” ou quem sabe compará-la ao “time dos anos 70”. O custo da copa valerá a pena, por que o Brasil é campeão... A emoção do canto do Hino será o ícone de todas as celebrações e poderemos, quem sabe, lembrar a estrofe com a ênfase merecida dos heróis: “Gigante pela própria natureza”. Emoção carregada de pura paixão é isso que está para além do racional. Escondida nas entrelinhas de um país que precisa acordar e vencer a partida das necessidades básicas as quais se não forem superadas não haverá sentido o grito da liberdade.
Padre César: Quem ganha e quem perde com a Copa do Mundo?
Professor Mário: Infelizmente não consigo responder com tanta objetividade a esta questão, pois do lado do torcedor mais vibrante, como brasileiro queremos que o Brasil seja o grande vencedor desta copa do mundo, mas não só o do time de futebol, mas a nação. Espero que sejamos campeões em todos os sentidos: daquelas vozes das manifestações legítimas e amadurecidas que clamam pela diminuição das desigualdades sociais, pelo diálogo intercultural, pelas vozes esquecidas que não são atendidas com qualidade pelos serviços essenciais (saúde, educação, lazer, cultura). A sociedade política brasileira ganhou uma enorme oportunidade de repensar os paradigmas de sustentação e legitimidade do poder e representatividade com a copa do mundo. Certamente muitos empresários e publicitários de grande marca ganharam com a copa do mundo, mas perderam quando apostaram suas fichas na passividade da lógica do consumidor. É natural que os torcedores dos estádios (ou “arenas”) não são os das ruas e estes sofreram com o aumento absurdo dos preços das mercadorias básicas. Novamente, a lógica do consumo, reforçou a tese de que quem perde é sempre o que sustenta a pirâmide social, os mais sofridos, que por sinal acabam sendo a maioria dos torcedores brasileiros.
Padre César: As manifestações contra a Copa do Mundo são válidas? As obras que custaram muito dinheiro impedem o necessário desenvolvimento do Brasil em outras áreas?
Professor Mário: Tenho refletido e estudado um pouco mais sobre este assunto, inclusive oriento um trabalho de pesquisa na qual temos a oportunidade de refletir sobre o quanto estas manifestações tem sido importante para o repensar político do Brasil. Durante algum tempo parecia que a sociedade brasileira vivia sob o manto da passividade, mas agora somos palco de um movimento que quer ser escutado. A questão é que ainda precisamos aprender a fazer de forma a não confundir manifestação política com atos de desrespeito à vida humana, aos direitos dos outros e ao bem público. Corre-se sempre o perigo de, ao questionar o poder, deixar um vazio de legitimidade e autoridade, e isso vir a significar um ato mais violento de usurpação política das liberdades individuais em nome de uma ordem pública rompida. Acredito que o estopim destes movimentos tenha sido o gasto exagerado que tivemos na construção das obras dos estádios que deveriam vir acompanhadas de toda a sua infraestrutura e não apenas das “arenas”. No entanto, infelizmente, não sou tão otimista a ponto de acreditar que se não houvesse tal empreendimento este recurso teria sido investido nas áreas fundamentais (saúde, educação, cultura, moradia...). Se este argumento fosse válido, antes mesmo da copa do mundo o Brasil já teria “padrão Fifa” nestes segmentos. A vantagem, se seguirmos está lógica, é que temos agora um argumento que podemos perseguir: se é possível investir e comprometer o dinheiro público em construção de estádios de futebol, porque não fazê-lo com a educação e saúde?
Padre César: Será que o Brasil não vai sair perdendo com a Copa: em boa fama? Em mostrar desorganização? Em riscos de atos de violência?
Não temos ainda um parâmetro para comparar com tanta veemência se vamos sair com boa ou má fama. Os meios de comunicação tem opinião dividida a este respeito. Tenho acompanhado alguns noticiários que entrevistam turistas que estão achando ótimos a hospitalidade, o cuidado, a organização,... Outras emissoras se pronunciam de forma negativa, enfatizando os erros, a falta de infraestrutura, o atraso... Temos que pensar que há muito interesse em “vender a imagem da copa” que não se limita somente ao Brasil. A Fifa é uma organização comercial e publicitária e vive do controle sobre as grandes marcas esportivas e que precisa da credibilidade de que a escolha feita para realização da Copa do Mundo em um país foi a mais acertada. Veja, por exemplo, todo o aparato que ela criou para obrigar que algumas medidas fossem tomadas antes da copa, um pronunciamento negativo era imediatamente corrigido... O episódio recente da segurança, da falta de alimento dentro do estádio, é rapidamente resolvido. Nada pode comprometer a organização da Fifa e, com isso, o Brasil sai “bem na fita”. As manifestações estão sendo muito bem conduzidas pela imprensa para filtrar a informação do grande público, principalmente, se levarmos em conta a imprensa internacional. O Brasil político esperava mais desta copa, mas, ao mesmo tempo, as coisas estão fluindo sem a intervenção política direta de algum governante. O aparato de segurança investida é reforçado pelas forças particulares mantidas sob a supervisão direta da Fifa. Acredito que poucos brasileiros se deram conta de que estamos, no que se refere à dimensão esportiva, sob um regime de exceção: somos governados até o final da copa pela FIFA.
Padre César: Tem razão quem não queria nem quer a Copa no Brasil?
"Esta riqueza de culturas vale a copa do mundo e poderia desconstruir todo e qualquer argumento contrário a sua realização."
Professor Mário: Acredito muito na democracia e tenho estudado como podemos melhor compreendê-la e não simplesmente aceitar o argumento de que a vontade da maioria prevalece sobre o da minoria. Muitas vezes falta a minoria qualificar melhor seus argumentos para poder dialogar com uma maioria que se convenceu, ou se deixou convencer, de que seria muito bom para o Brasil, terra do futebol, realizar a Copa do Mundo. Sem dúvida, somos um país de grande diversidade cultural e de uma riqueza imensa.
No entanto, precisamos também nos convencer de que enquanto algumas necessidades básicas não forem resolvidas, pouco avançaremos neste diálogo democrático, pois onde há condições desiguais, adversas, torna-se difícil estabelecer um ponto comum de interesse. Este período se mostra, sem dúvida, muito rico, temos visto, pela televisão, o espetáculo do mundo nas ruas por onde os jogos acontecem. Esta riqueza de culturas vale a copa do mundo e poderia desconstruir todo e qualquer argumento contrário a sua realização. O Brasil econômico calcula um retorno estrondoso na casa de bilhões, com a chegada dos turistas, este vai-e-vem dos times que propositalmente deslocou as torcidas de um lugar para o outro. Os estádios, em sua maioria, tem estado lotados.
Os serviços de terceiros, a empregabilidade aumentou e tudo ao redor da copa trouxe boas divisas para alguns milhares de brasileiros. Neste aspecto, a Copa do Mundo, valeu? A questão fica para o depois da copa... o que fazer com estas “arenas” construídas em cidades na qual o número de habitantes é menor do que a própria capacidade do estádio? Haverá sempre grandes partidas de futebol que justifiquem o custo de manutenção? Quem ficará responsável pela administração dos estádios, uma vez que a maioria foi construída com verbas públicas? Quem irá supervisionar o repasse desta dívida contraída? Portanto, temos mais perguntas que respostas que ficam para depois da Copa. Tem razão quem não queria a copa no Brasil, só podemos responder depois que estas perguntas também forem respondidas.
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