Era chegar Dezembro e escrever num papel a relação de amigos e parentes a quem devíamos enviar cartões de Natal. Cartão de Natal na Manaus-família era coisa levada a sério. Tinha um significado de sentimento genuíno impregnado de fé cristã. Os anos difíceis após o declínio da economia da borracha dotaram nossa epiderme com grossa camada de um verniz, diria que impenetrável de determinação e esperança em felizes Anos Novos. Já diziam os antigos, que todas as leis e dogmas do coração de um povo não são meras palavras ao vento. São palavras inscritas no peito de cada um com o próprio dedo de Deus. E assim eram os cartões de Natal. As livrarias encarregavam-se de vende-los em variedade. De gravuras, formatos, tamanhos e cores. Era deste modo que a Manaus dos anos duros e ternos, sem televisão (esse totem sagrado, cultuado em cada lar desde os anos setenta) mantinha contacto com as figuras natalinas: O Papai Noel, a neve, as renas, os pinheiros e todos os símbolos natalinos, exceto o presépio. Este possuía lugar cativo em cada igreja e casa manauense. Uns mais adornados que os outros. Uns mecanicamente movimentados, como o de Branco e Silva. Outros como o da Igreja de S. Sebastião em imagens estilo barroco e também de tamanho natural, e uns jitinhos, jitinhos... Mas sempre o Menino, ali, na palha! A mostrar, como alguém já disse, o real significado do Natal: “Não é o berço em que se nasce que dignifica o homem, mas o homem que dignifica o berço em que nasce”.
Nessa época o carteiro adquiria o caráter de porta-voz de reinos que não passam. E lá vinha ele dobrando a esquina cheio de envelopes brancos despejando-os em cada moradia. A dona de casa com o carinho de coração uno e indivisível expunha um a um na árvore de Natal armada no canto da sala. E então todos veriam que cartão de Natal era coisa séria. Parte da personalidade do remetente estava ali, nas frases-mensagens, na escolha da estampa, na letra manuscrita (nunca datilografada. Isso denotaria frialdade de sentimentos ou palavras ocas levadas ao léu). Todos os cartões recebidos tinham como obrigação religiosa serem retribuídos. Estes chegavam por vezes após o Natal pelo acúmulo de correspondências nos correios. Não retribuir, configuraria num insulto ou indiferença aos “augúrios de um Feliz Natal e Próspero Ano Novo”. Repito, cartão de Natal na Manaus-uma-só-família era coisa séria. Era a identidade do povo. E ali registrados como atributos indissolúveis a solidariedade e a índole fraternal. Veio por fim a pós-modernidade, e com ela essas catedrais do consumo denominadas “shoppings centers”, onde você e eu rendemos culto ao consumismo. Logo nós que éramos sóbrios! De uma geração gozando a vida sem um tostão no bolso. Que se embebedava do lazer dos balneários e nos passeios dominicais ao entardecer no “Roadway”. Bastava ver o sol efervescente dissolver-se no Negro e o gigantismo dos transatlânticos. Uma geração que gastava sim, voz e sola de sapato para executar serenatas. E as namoradas gastando emoções pelas frestas de janelas recatadas.
Hoje o centro comercial tornou-se alvo de peregrinações da massa popular. Miscelânea de suor e pressa, e gritos e empurrões de quem consegue primeiro a promoção do dia. O certo é ser um vencedor, nessa competitividade insana de quem tem a melhor boneca, o melhor carrinho, o melhor vestido, o melhor celular, a melhor jóia... O certo atualmente, é sentir-se realizado nos seus ideais egocêntricos e materialistas. O cartão de Natal você não encontra mais em árvores de natais. O eu, sempre o eu, criou a celeridade glacial das mensagens natalinas eletrônicas. As palavras destituídas da calidez da mão sobre o papel. Robóticas, apenas. Cartão não era para ser rasgado mal se recebe. Como o dessas empresas e desses políticos a enviar votos de Boas Festas pela lista telefônica ressuscitando pessoas falecidas que ainda figuram nos catálogos. Suas metas não é sentir o Menino na Palha, mas maior rentabilidade nos negócios e muitos votos nas urnas. E cartão de Natal com alma, é algo em extinção. Os valores espirituais são pesos-mortos. Em cifrões são medidos os valores. Cartão de Natal, hoje é apenas estampa bonita no mostruário de livraria. E como fere! Aqueles com alma somente os olhos da memória podem agigantar e eternizar...
*Carmen Novoa Silva é Teóloga membro da Academia Amazonense de Letras e da Academia Marial
E-mail: novoasilva@yahoo.com.br
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