“A Terra é plana / A vacina contra a COVID-19 mata / A máscara cirúrgica pode afetar o cérebro / A ditatura militar foi um dos melhores períodos do Brasil”. Para muitos de nós, em pleno século XXI, é inconcebível que afirmações como essas sejam não só defendidas por determinados indivíduos, como propagadas e compartilhadas, exaustivamente, nas mídias digitais.
Como já comentei outras vezes aqui no A12, embora pareçam situações surreais, elas se tornam mais compreensíveis quando pensamos que os defensores de tais inverdades foram condicionados a fomentarem essas crenças. Isso porque eles estariam inseridos em bolhas virtuais ao acessarem apenas aquilo que lhes interessa, impedidos de enxergar o todo, justamente por não conseguirem romper o muro que os separa da realidade. Logo, se eles não conseguem romper tais bolhas, a solução seria evitá-las. Eis o grande problema, pois a formação delas, muitas vezes, está atrelada à idealização de um passado ao qual não se pertence.
Consideremos a questão da ditadura no Brasil como um exemplo. O fato de muitos a defenderem até os dias de hoje está relacionado ao falso florescimento de um período que não viveram, ou, se viveram, não enfrentaram as mesmas agruras de quem foi perseguido e torturado e/ou viu amigos e parentes próximos desaparecerem. Sendo assim, não enxergaram a totalidade factual, tomando a parte que viveram como um todo. E, em suas mentes, se nada aconteceu com eles, o período não poderia ser classificado como ruim. Alguns acreditam, ainda, que, se houve punições, elas foram devidamente aplicadas, pois aqueles que as sofreram as mereceram.
Leia MaisNaturalização e banalização: grandes ameaças à verdadePensar a realidade: Um desafio filosófico na modernidade Assim, tais indivíduos reorganizam e alteram o passado real a partir do próprio acervo imagético mental. O Prof. Dr. Jack Brandão, referência no Brasil em estudos sobre o poder das imagens, nos auxilia a compreender tal fenômeno por meio de um conceito criado por ele, chamado de iconofotologia.
O pesquisador utiliza o termo, oriundo das expressões gregas eikon (imagem), fotós (luz) e lógos (palavra), para ressaltar que todos nós possuímos, em nossa mente, um acervo iconofotológico, o qual é alimentado a partir de nossas experiências e percepções que adquirimos ao longo da vida. Trata-se de nosso “estoque logo-imagético” mental, capaz de preencher as lacunas que não vivemos ou não recordamos do passado, com as imagens que formamos em nosso cérebro.
Diante do boom informacional de imagens e palavras enviadas, simultaneamente, a todo instante, graças à popularização das mídias digitais, as reconstruções imagéticas do passado se potencializaram ainda mais. Afinal, uma grande parte da informação a que temos acesso, ao longo de nossa existência, se dá pelo contato com as imagens, e não com a realidade em si. E não podemos nos esquecer que cada uma delas foi produzida com uma intenção a qual, não necessariamente, consiste em reproduzir os fatos.
Eis o equívoco de muitos: acreditar que a imagem é uma reprodução fidedigna do real, como é o caso da fotografia. Algo que não acontece apenas no momento atual, mas no decorrer da história. Ao observarmos, por exemplo, registros fotográficos da Segunda Guerra Mundial, poderemos ter a falsa sensação de proximidade com tal período. Nós nos esquecemos que imagens criam narrativas para atender a intenção de seus autores. A seletividade do que será fotografado, de modo a enaltecer um país e ridicularizar seus inimigos, é uma dentre tantas estratégias destinadas a convencer os leitores das “realidades” construídas. Como não estiveram nas guerras, estes ficam mais propensos a absorver tais registros em seus acervos iconofotológicos como verdadeiros.
Brandão ressalta, inclusive, que tal acervo se ampliou consideravelmente com o surgimento da fotografia, no século XIX, e sua expansão para uma infinidade de leitores que, até então, não tinham acesso a muitas imagens. Afinal, antes de tal inovação, elas eram restritas a determinados receptores e necessitava de certos referenciais da antiguidade e medievais para serem compreendidas, como é o caso dos emblemas, ilustrações alegóricas, surgidas no século XVI, cujo repertório imagético provém da Bíblia, dos bestiários e dos hieróglifos.
Enfim, se no momento atual há quem negue a pandemia e duvide da vacina, podemos creditar isso a uma consequência do condicionamento de seu acervo imagético, que contribui para a formação das chamadas bolhas. Reconstrói-se o passado para a defesa de um presente totalmente paralelo à realidade e que, na situação de agora, contribui para mais de 400 mil mortes por COVID-19.
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