Especial de Maceió (AL)
Gal percorre as ruas de São Paulo puxando uma carroça. Seu corpo é seu instrumento de fuga e salvação. Seus olhos estão fixados no horizonte cortado pelos carros, pela poluição, por um desamparo. Ela carrega o peso do mundo nas costas, deixa seu lar e a violência vivida. Busca sua sobrevivência e a de seus filhos.
Esta é a história de “A melhor mãe do mundo”, um filme escrito e dirigido por Anna Muylaert, que estreia dia 7 de agosto nos cinemas. Vencedora dos prêmios de Melhor Roteiro, Melhor Fotografia e Melhor Interpretação para Shirley Cruz (quem protagoniza a vida de Gal) no 40º Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, no México, a obra de Anna Muylaert retrata, de modo brutal e poético, a vida de uma mãe solo, vítima de violência doméstica.
A atriz Shirley Cruz
O filme de Anna revela as dores de uma maternidade solitária, rodeada de desafios financeiros em busca de vida digna. O retrato da realidade de 11 milhões de mulheres que criam sozinhas seus filhos, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), referente a 2022. E por mais dolorido que seja de assistir, a cineasta traz em tela o bálsamo de uma bonita relação entre mãe e filhos. De uma mãe que é capaz de fazer de uma carroça um espaço sagrado de infância, de afeto e imaginação, de refúgio a tantas violências.
A violência contra as mulheres e crianças é mais presente no dia a dia do que nas telas de cinema. Prova disso são os dados e vídeos dilacerantes que chegam, misturados a memes, denunciando o flagelo na vida das famílias. Dados do 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 indicam um aumento de diversas formas de violência contra as mulheres.
Reveja o Especial do A12"Não é você, é ele!": Série de vídeos discute violência contra a mulher As formas são: homicídio e feminicídio (em suas modalidades consumada e tentada), lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, ameaça, perseguição (stalking), violência psicológica e o crime de descumprimento de Medida Protetiva de Urgência (MPU).
“Entre os nove crimes monitorados, dois apresentaram queda na taxa nacional em relação a 2023: homicídio doloso de vítimas mulheres (-6,4%) — indicador que inclui os feminicídios —, e ameaça (-0,8%). Lesão corporal dolosa no contexto de violência doméstica apresentou estabilidade. Os demais registraram crescimento expressivo, que variam de 0,7%, no caso do feminicídio, a 19%, no caso da tentativa de feminicídio”.
A avaliação é das pesquisadoras Isabella Matosinhos e Amanda Lagreca. Ambas destacam que, embora os números absolutos demonstrem uma leve queda de homicídios dolosos, há pouco que se comemorar, já que 3.700 mulheres perderam as suas vidas de forma violenta em 2024, e dessas, 1.492 foram mortas em razão de serem mulheres, o que significa dizer que acontecem 3,4 homicídios femininos a cada 100 mil mulheres.
Mas os dados se alteram de estado a estado. 16 deles tiveram taxas superiores, como no Ceará (6,5), no Mato Grosso (5,3) e em Pernambuco (5,2). Os três estados com as menores taxas de feminicídio foram Amapá (1,5), São Paulo (1,8) e Sergipe (1,9). Dados que, no entanto, nem sempre retratam a realidade, tendo em vista a subnotificação dos casos.
“Quando falamos de violência de gênero, falamos de um fenômeno que continua sendo marcado por subnotificação, silêncio e naturalização social. Enquanto sociedade, por mais que estejamos gradualmente rompendo com a normalização dessas violências — especialmente entre mulheres, movimentos feministas e alguns setores do poder público —, ainda enfrentamos uma cultura que muitas vezes trata a violência contra a mulher como natural, no pior sentido que esta palavra poderia ter nesse contexto, isto é: como algo que decorre da ordem regular das coisas”.
Os tempos modernos e caóticos têm possibilitado a desnaturalização de cenas brutais, já que elas nos invadem, nos preenchem de angústia, medo, desolação. Mas nos convocam também, homens e mulheres, a não nos tornarmos cúmplices de situações que atacam a dignidade da vida humana.
Desde o dia 26 de julho, quando o ex-jogador de basquete Igor Eduardo Pereira Cabral, 29 anos, foi flagrado pelas câmeras do elevador de um prédio, em Natal (RN), um número ressoa feito alarme: 61. Cabral agrediu sua então namorada, a promotora de vendas Juliana Garcia, com 61 socos seguidos dentro de um elevador.
Juliana tentou recuar, se proteger, sobreviver. Saiu cambaleando do elevador com o rosto desfigurado. Ele alegou “surto claustrofóbico”. Ela sofreu múltiplas fraturas no rosto e na mandíbula. Foi socorrida por vizinhos e escreveu seu depoimento, já que não conseguia falar. Juliana foi mais uma. E nós nos perguntamos: quantas mais?
Cabral teve a prisão em flagrante convertida em preventiva.
“Apanhar a mulher apanha em qualquer lugar do mundo. A mulher chiquérrima está apanhando, e às vezes você nem está sabendo. […] em algum lugar, toda mulher já foi abusada: o abuso moral, físico. Não é possível você nascer mulher e nunca ter sofrido nada ou não ter visto nada, porque se não, me diga em que mundo vive, porque vou me mudar para lá”, contou a atriz Shirley Cruz.
Ela é a protagonista da obra de Anna Muylaert, e conversou com nossa reportagem em um bate-papo na pré-estreia do filme, em Maceió (AL).
Ali, a atriz revelou ter sentido o peso da atuação. Um peso literal, chegando a conduzir a carroça com mais de 300 quilos e um peso na alma, ao — em sua visão — reviver a marca da escravização no país.
“O ódio que eu senti puxando aquela carroça foi um combustível real. Porque olha, uma mulher negra puxando 300 a 400 quilos é ou não é ranço de escravidão? A escravidão acabou para quem exatamente?”, provocou a atriz, que agora está engajada em um projeto de lei para que as mulheres catadoras tenham acesso a carroças motorizadas.
As mulheres negras são as maiores vítimas de violência em âmbito doméstico. Em relação à raça, a maior parte das vítimas de feminicídio são negras (63,6%).
Isso significa que mesmo que a violência de gênero vitimize todas as mulheres, há mais chances de mulheres negras serem vítimas do crime de ódio do que mulheres brancas, as quais representam 35,7% do total das vítimas em 2024.
Esse número é bastante semelhante ao percentual de mortes violentas intencionais (MVI) de mulheres pretas no Brasil em 2024, de 68,6%, e 30,7% de mulheres brancas mortas.
Em se tratando da faixa etária, 70,5% das mulheres vítimas de feminicídio tinham entre 18 e 44 anos. Do total de vítimas femininas de MVI, o percentual é bastante semelhante, de 68,2%. Essa também é a faixa etária que concentra as vítimas de violência letal no Brasil como um todo (77,3% das vítimas de MVI em 2024, considerando todos os gêneros, tinham entre 18 e 44 anos). Chama atenção que 24,9% das vítimas de feminicídio tinham mais de 45 anos — ao nível das MVI femininas, o percentual é de 23,7%, indicando que as mulheres continuam tendo risco de serem mortas, mesmo com idade mais avançada.
Por ocasião de uma campanha nacional na Itália, em 2022, o Papa Francisco lembrou que o modo como tratamos as mulheres, em todas as suas dimensões, revela o nosso grau de humanidade:
“A violência contra as mulheres é uma erva venenosa que aflige nossa sociedade e deve ser eliminada pela raiz”. “Essas raízes”, escreveu o Pontífice, “crescem no solo do preconceito e da injustiça; devem ser contrastadas com uma ação educativa que coloque o centro a pessoa com sua dignidade”.
Em junho, o Papa Leão XIV, ao encerrar o Jubileu dos Movimentos, fez um pronunciamento contra os feminicídios e outras formas de violência enraizadas em relações de dominação:
“Penso também com muita dor em quando uma relação é infestada pela vontade de dominar o outro, uma atitude que muitas vezes resulta em violência, como infelizmente demonstram os numerosos e crescentes casos de feminicídio”, declarou o papa.
De volta à Melhor mãe do mundo, eis um filme que faz rir e chorar de ternura e de identificação, de denúncia da ausência do Estado e da necessidade de saídas coletivas para problemas tão enraizados em nossa cultura como a desigualdade social, as tantas violências, o machismo.
Um filme necessário, que causa estranhamento, angústia, e desespero diante da realidade da vida das mulheres, das mães. “A melhor mãe do mundo” é um colo para todas nós!
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