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O Auto da Compadecida: a intercessão e a mediação de Nossa Senhora

O presente artigo é um trabalho de avaliação do Cursos Católicos online na área de Cultura Marial, sobre a Intercessão de Maria, com enfoque no livro e no filme O AUTO DA COMPADECIDA.

Escrito por Maria Salete Somensi

30 SET 2013 - 00H00 (Atualizada em 15 MAR 2023 - 14H04)

Introdução

“Meu Filho, perdoe esta alma, tenha dela compaixão”! Essas palavras, colocadas em destaque durante um julgamento, têm um enfoque fundamental de intercessão, alguém pedindo para Alguém a misericórdia em favor de alguém.

Neste contexto, refere-se a Nossa Senhora pedindo pelo personagem de João Grilo numa das cenas em o "Auto da Compadecida". João Grilo não tem possibilidades de merecer o céu: sua vida era totalmente vazia de boas ações. Pelo contrário, vivia fazendo confusões e contando mentiras. Mas era pobre, vivia passando fome e comendo macambira (vegetação espinhosa, típica do Nordeste brasileiro, muito resistente à seca).

Todo filho que tem uma mãe sabe que pode chama-la a qualquer hora, que ela sempre dará um jeito de atender. Não importa que tipo de filho seja, se bom ou ruim, para a mãe todos são iguais e merecem seu amor total, principalmente nas horas em que mais necessitam.

Quando o personagem diz: "– Eu tenho um trunfo, e é maior do que qualquer santo". É  a Mãe da Justiça. Ele tem confiança que pode pedir sua ajuda e diz: "– Vou fazer um chamado especial e ela virá me defender." Na simplicidade, convoca a todos a rezarem a Ave-Maria, cheia de Graça, a Santa Maria, para que rogue por eles naquela hora.

Reprodução/YouTube
Reprodução/YouTube

Devoção Mariana

Desde o inicio dos séculos existem muitos relatos, documentos com sinais de devoção a Mãe de Jesus, a Virgem Maria Santíssima.

Nos primeiros séculos, a preocupação maior era preservar a Mãe do Senhor, depois era de exaltá-la como Aquela que vem em auxílio dos seus filhos, como podemos verificar nas diversas formas de venerações de acordo com as circunstâncias de lugar, de tempo e de necessidade de diferentes tradições culturais.

Muitos locais de devoção foram construídos em agradecimento à Virgem Maria, que sempre intercede pelos seus junto a Jesus, lembrando, que, esta piedade popular sempre procura expressar de modo mais confiante o lugar especial que Maria ocupa na Igreja.

Depois de Cristo, que é o único Mediador entre nós e Deus, está Nossa Senhora, acima de todos os anjos, santos e santas. Mas com certeza é Ela que está mais próxima de todos nós, sendo assim venerada com muitos títulos. Entre eles os que mais se aproximam do povo sofredor como: “Saúde dos Enfermos”, “Consolo dos Aflitos”, “Ajuda dos Cristãos”, “Refugio dos Pecadores”, entre muitos outros que lhe são atribuídos em diversas ocasiões de perigos, de necessidades e de agradecimentos.

“Maria é a ponte que leva os homens da terra ao céu”.

A devoção mariana no Brasil tem uma característica marcante, enfatizando a veneração à Virgem Maria num aspecto popular, simples e original, como percebemos na obra literária do Auto da Compadecida e também nas tradições familiares, em que o amor a Virgem Maria é passado de gerações a gerações, com a mesma ou até com muito mais devoção.

É plantada a sua semente nos corações desde a infância e aí, num determinado momento da vida, se achando em perigo ou se precisando de ajuda, lembra que tem uma Intercessora, uma Mãe no Céu que poderá chamar e ela virá lhe ajudar. Sabe que muitas vezes é um filho indigno, esquecido, relaxado com suas obrigações, mas sabe que Ela está lá, em prontidão, esperando o nosso olhar.

A intercessão de Maria na hora da morte

Parece que é muito simples, ao ver o filme e ler o livro “Auto da Compadecida”, é só pedir auxilio à Mãe de Jesus e tudo se resolve. É composto de uma total simplicidade que nos leva a uma grande reflexão.

Encontrei, após ler e reler vários materiais Teológicos e Mariológicos a respeito desta “intercessão e mediação” de Maria, uma resposta também simples no Hino Akatistos nº 3:

Ave, ó escada sublime por quem Deus nos veio!

Ave, ó ponte que os homens ao céu encaminha!

Ave, dos anjos tu és maravilha gloriosa!

Ave, do inferno derrota total contundente!

“Maria é a ponte que leva os homens da terra ao céu”. Como tudo isso acontece? É necessário um comentário mariológico e teológico para tentar explicar um fato tão real e constante que faz parte da vida de todos, ou de quase todos os cristãos.

Todo aquele que vive uma relação filial sabe que o amor de Mãe é um amor pleno, completo, que não tem limites, que é doado livremente sem esperar nada em troca, é um amor intercessor, ou seja, quer sempre estar ajudando, apoiando, cuidando e principalmente atento ao que está acontecendo: se está tudo em ordem, se não está faltando nada, se todos estão bem… Assim e muito mais é o Amor de Maria por nós.

Nas cenas de Maria nas Bodas de Caná e de Maria aos pés da Cruz, temos a presença fundamental bíblica da intercessão de Maria.

Em João 2,1ss., lemos: "…achava-se ali, naquele lugar, a Mãe de Jesus. Como viesse a faltar vinho, a Mãe de Jesus disse: Eles (cada um de nós) não têm mais vinho. A Mãe de Jesus diz: Façam o que Ele vos disser…"

Aqui devemos abrir um parênteses para algo concreto: Maria intercedeu por todos sem ninguém pedir. Ela apenas viu a situação do momento e o que poderia acontecer se não fosse feito algo. Estava atenta e sabia que podia pedir auxilio ao seu Filho. Sua confiança junto com a obediência dos servos que fez o milagre acontecer.

Era necessário este fato para nós e principalmente para os discípulos crerem em Jesus (João 2,11). Muitas vezes não percebemos a presença da Mãe, mas acreditamos, na Fé, que Ela sempre está atenta ao vinho que está faltando em nossas vidas.

Em João 19,25-27, junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e outras mulheres, quando Jesus viu sua mãe e também o discípulo amado disse: "Mulher, eis ai teu filho" e acrescentou: "Filho, eis aí tua Mãe". Jesus naquele momento doloroso ainda teve forças para nos entregar seu tesouro, guardado até então no seu coração: Ela é toda de vocês. Minha Mãe cuidará de cada um como cuidou de mim.

A sua maior missão como Mãe, fiel ao projeto do Deus da Vida, é cuidar e interceder por nós, agora e na hora mais dolorosa e importante de toda a nossa vida, que é a hora de encontrarmos com seu Filho. E o bom é saber que, se pedirmos, com certeza Ela irá apresentar-nos a Ele dizendo, como disse a João Grilo e aos outros no julgamento final:

"Intercedo por estes pobres que não têm ninguém por eles. Por esses filhos amados, que não tiveram a chance de conhecer a Verdade. Salve-os!"

Podemos até usar outros caminhos, outros meios de alcançar o céu, mas aquilo que parece simples é algo completo; é só atravessar a ponte. Que ponte? Maria é esta ponte, curta, certa, fácil, perfeita e segura para chegar até Jesus. João Grilo e seus “companheiros” recorreram a esta ponte. Também Jesus utilizou esta mesma ponte para chegar até nós: foi por Maria que o céu desceu a terra.

Diálogo intercessor

Quase todas as orações e consagrações dedicadas a Maria têm constantemente a invocação: “Rogai por nós”.

Na oração da Salve-Rainha, rezamos: "Rogai por nós, Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo". E qual será essa promessa, a não ser a nossa salvação? Cristo se encarnou no seio Virginal de Maria, nasceu, cresceu, anunciou o Reino de Deus, foi crucificado, morreu e ressuscitou, venceu a morte, deu-nos vida nova.

A salvação é para todos que a merecerem por livre vontade, mas não é fácil: exige que carreguemos a cruz e sigamos com Jesus. Então, esse “rogai por nós” é pedir auxilio, ajuda a alguém que está próxima de Jesus e antecede a cada um de nós no Reino celeste.

Jesus é o grande e único Mediador nosso junto a Deus Pai. Maria é aquela que humanamente entende a cada um, sabe de todos os sofrimentos, dores e aflições que temos que passar para sobreviver. Como Mãe de Deus, está tão próxima a Ele que pode com um jeito único e especial pedir auxilio em prol de seus filhos prediletos e ou rebeldes. É uma mediação subordinada a Jesus Cristo.

Diálogo entre os “quase condenados”, Jesus, Nossa Senhora e o demônio:

- Apelo para a justiça.

- E eu para a misericórdia.

- Vou dar um jeito nisso.

- Lá vem a Compadecida! Mulher em tudo se mete!

- Protesto.

- Eu sei que você protesta, (diabo), mas não tenho o que fazer. Discordar de minha mãe é que não vou.

- E pra que foi que você me chamou, João?

- É que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno. Eu só podia me pegar, mesmo, com a Senhora.

- Está bem, vou ver o que posso fazer.

- Está recebida a alegação. Vou proferir a sentença.

Maria, a Compadecida, conseguiu dar um jeito em todos. Intercedeu por cada um conforme aquilo que eles viveram, alegando sempre em algum momento de suas vidas um ato de fé, de caridade, de devoção a ela e de amor à Trindade Santa.

Conclusão

Depois de elevada ao céu, Maria não abandonou esta missão salvadora com sua intercessão, mas continua a nos alcançar os dons da Redenção. Como conclusão, gostaria de, em primeiro lugar, destacar o grande mariológo Hans Urs Von Balthasar, ao afirmar sobre a participação de Maria na Redenção:

“Maria não é um modelo em que a Igreja deve olhar de fora. Ela é a figura da Igreja, na sua plena realização – a essência da igreja é mariana. O “sim” de Maria é o lugar de encontro entre Deus e o Homem. Não é uma ação individual, e sim coletiva, envolvendo todos nós, tornando-nos o modo de ser Igreja. Maria é o perfil da Igreja que abraça tudo”.

Em segundo lugar, reescrevo a Exortação Apostólica “Marialis Cultus” nº 28:

“Deste modo, o amor pela Igreja traduzir-se-á em amor para com Maria e vice-versa, pois uma não pode subsistir sem a outra. A concluir, insistimos ainda na necessidade de que a veneração dirigida à bem- aventurada Virgem Maria torne explícito o seu intrínseco conteúdo eclesiológico: isto equivale a dizer, lançar mão de uma força capaz de renovar, salutarmente, formas e textos”.

Maria faz parte de nossa vida, quer aceitemos ou não, pois é vontade de Deus e a Igreja concretiza o projeto de Maria, a partir da encarnação do Filho de Deus. Deus nos dá seu Filho. Maria continua esta obra de dá-Lo ao mundo e o faz a cada vez que intercede por alguém.

Que bom poder dizer como Santa Teresinha do Menino Jesus“Sabemos muito bem que a Virgem Santíssima é a rainha do céu e da terra, mas ela é mais mãe do que rainha”.

Que bom podermos ter a confiança e a certeza, como João Grilo, ao chegarmos ao nosso encontro celestial e dizer:

“Valha-me Nossa senhora, Mãe de Deus de Nazaré”!

Fonte: Livro: O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna da Editora Agir – 35ª Edição – Com base em romances e histórias populares do Nordeste Brasileiro

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