Por Leonardo C. de Almeida Em Palavra do Associado Atualizada em 03 ABR 2020 - 16H42

A Devoção Popular na Semana Santa

“Vem andar conosco nesta procissão: o caminho é longo, cheio de opressão.
Mas do teu madeiro haverei de ver uma flor mais nova a reflorescer!”
(Canto da Procissão de Ramos)

devocao_popular_semana_santa_webA Semana Santa é a celebração do Mistério central da nossa fé: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. O essencial na Semana Santa é aquilo que vivenciamos nas diversas celebrações litúrgicas, sobremaneira no Tríduo Pascal. Mas a Igreja conta, ainda, com uma herança inestimável e que deve enriquecer a espiritualidade dos fiéis e encaminhá-los para celebrar, na Liturgia, a memória do Mistério Pascal do Cordeiro: tratam-se das manifestações de piedade e devoção popular. Tão variadas, históricas, contextualizadas, inculturadas, belas, interessantes e inspiradoras em incontáveis comunidades católicas do Brasil e do mundo, que celebram, cada qual a seu modo (mas sem perder a unidade que caracteriza a Igreja), a Semana Santa e os dias que a antecedem. Nestas linhas dedicamo-nos, especialmente, às expressões de piedade e devoção popular em nosso país, sem, contudo, ter o intento ou a pretensão de expor, na sua totalidade, tudo o que se realiza nesse campo da fé em uma ou outra região. São apenas apontamentos e relatos daquilo que tomamos conhecimento por diversas vias, mas que não se esgota neste artigo.

A devoção e o culto à Santa Cruz, a Nossa Senhora – das Dores, da Piedade, da Angústia, da Agonia ou da Soledade – e ao Cristo Sofredor – Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos, Nosso Senhor Bom Jesus da Paciência, da Pedra Fria, da Sentença ou da Coluna (o Ecce Homo), Nosso Senhor Morto, do Bonfim ou Crucificado –, as imagens que constituem os chamados “quadros” da Paixão do Senhor, permitem que nosso povo tão oprimido se reconheça nos sofrimentos de Jesus e de sua Mãe e associe suas cruzes de cada dia à Cruz libertadora de Jesus, na doce e sempre viva esperança da ressurreição.

A arte sacra, por sua vez, não mede esforços para tornar os dramas da Paixão mais verossímeis nas referidas imagens – tidas pelo povo, diversas vezes, como milagrosas – que ficam expostas nesse período (uma vez que algumas regiões mantêm o costume de se velar com cortinas ou tecido roxo e púrpura os retábulos dos altares e as demais imagens dos santos nas igrejas): são obras escultóricas com expressões faciais marcantes e súplices; mantos feitos de tecidos ricos em brocados; perucas; braços articulados e adereços (como as espadas cravadas no Imaculado Coração da Senhora lacrimosa) que impressionam e comovem. Curiosamente, em alguns lugares (particularmente no Nordeste), é tradição antiquíssima se cobrir as imagens ou quadros dos santos inclusive nas casas das famílias devotas e tementes durante a Semana Santa.        

Evidenciam-se, nesse Tempo, os símbolos da Paixão: o galo, os cravos, a coroa de espinhos, a escada, o alicate, a inscrição “INRI”, a lança e a esponja, a faixa que desceu o Corpo da cruz, a jarra e a bacia do Lava-pés, a veste da qual Cristo foi despojado, a caveira, o sudário com o rosto estampado de Cristo ou o que envolveu seu santíssimo Corpo no sepultamento, etc, elementos comumente reunidos todos num mesmo cruzeiro fronteiriço às igrejas mais antigas.

Os cantos, com seus tons de contrição e acordes lúgubres e suplicantes, são uma riqueza à parte! Como é tocante se ouvir o cantar choroso e, ao mesmo tempo, repleto de vigor, do povo nas suas devoções comunitárias! Temos como exemplo o popular “Bendita e louvada seja no céu a divina luz”, mas também outros tantos: “Bendita sejais, Senhora das Dores”; “Pecador, agora é tempo”; “Vitória! Tu reinarás!”; “Oh face amortecida”; “Tudo está consumado”; “Pecadores redimidos”; “O meu coração é só de Jesus”; “Eu me entrego, Senhor, em tuas mãos”, “Perdão meu Jesus, perdão, Deus de amor”; “Abra a porta, povo”; “Senhor, os vossos passos”; “Pra consolar Maria”; “Eu canto louvando Maria, minha Mãe”; “Eu vim para que todos tenham vida”; “Prova de amor maior não há”; “Silêncio fazia lá no jardim”; “Canto do Senhor Amado” (que, por tradição, deve ser entoado sem interrupção até o fim e jamais se portando instrumentos cortantes); o canto de lamento da Verônica (ora em Latim, ora traduzido para o Português, dependendo do costume local); o canto penitente das “Três Marias” (Salomé, Cléofas e Madalena) na procissão do Senhor Morto e inumeráveis outros... Isso sem mencionarmos os cantos próprios da Liturgia!

Ainda em relação à questão musical, não poderíamos deixar de mencionar as marchas fúnebres, os motetos (próprios da erudição do Barroco e normalmente escritos em língua latina) e as demais composições próprias entoadas por corais, orquestras e bandas liras nos ofícios e procissões da Semana Santa, contribuindo para a construção da atmosfera dramática e comovente de tais cerimônias.

Foto de: Thiago Leon


Os versos introdutórios a este artigo, selecionados de uma canção harmoniosa e cheia de sensibilidade social, ecológica e poética, composta por Jaci Maraschin e Flávio Irala, são um convite à Procissão litúrgica do Domingo de Ramos e da Paixão. A composição une fé e vida, vinculando o descaso com a “Casa Comum” e a realidade sofrida do povo de Deus à Paixão de Jesus, o Libertador. São assim, a bem da verdade, as procissões, uma das expressões de piedade popular: refletem e evidenciam a dura caminhada dos irmãos e irmãs, neste mundo, unidos e fortalecidos pela fé no Cristo morto e ressuscitado, que caminha conosco e à nossa frente rumo à feliz eternidade. Apropriando-nos do poema de Geraldo Vandré, podemos considerar que o povo devoto segue o itinerário penitente da procissão da vida, com alegria e esperança, “caminhando e cantando e seguindo a canção”. As procissões sempre estiveram presentes na história da Igreja, sobretudo a partir da Idade Média e alcançando seu apogeu na época barroca. Classificam-se as procissões em litúrgicas, votivas ou de piedade popular. Nestes escritos, contudo, vamos nos ater às procissões de cunho devocional ou de piedade popular.

Reprodução
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 E como nosso povo gosta de Procissões! Sempre com terços, devocionários e velas às mãos, pés descalços “pagando” promessas, vestes semelhantes aos dos santos de devoção... E, muitas vezes, lágrimas de comoção e esperança. Veja-se o recorrente recorde de público na Procissão do Enterro com o beijamento do Senhor Morto na Sexta-Feira Santa (em alguns lugares, precedidos pelo emocionante rito do Descendimento de Cristo da Cruz). São vias-sacras penitenciais de madrugada nas igrejas, pelas ruas da cidade, à beira dos rios, nos sertões ou nas estações edificadas em montanhas e estradas; rasouras; subidas a morros; peregrinações a Santuários, a “capelas-passinhos”, a cruzeiros, a sete igrejas na Sexta-feira Santa, a cemitérios (onde se realiza, segundo alguns costumes locais, o ritual da “Encomendação de Almas”; a procissão do Encontro (do Senhor dos Passos com a Senhora das Dores ou do Ressuscitado com a mesma Senhora, antes das Dores, agora revestida com as cores claras e vibrantes da alegria da Ressurreição); a Procissão do Fogaréu (infelizmente tornada mais evento teatral do que devocional em algumas cidades); do Depósito (com seu característico velário roxo); do Senhor do Triunfo; da Prisão de Cristo; da Ressurreição (com o Círio Pascal, a imagem do Cristo ressuscitado ou com o Santíssimo Sacramento). Os dias? Variam muito, do Domingo de Ramos ao de Páscoa, e, às vezes, tais procissões são enriquecidas com tapetes de serragem, crianças vestidas como anjinhos e acompanhadas de tocantes e eloquentes sermões: do Encontro, da Soledade, do Pretório, do Calvário, das Sete Palavras...

Sobre a procissão da tarde ou noite de Sexta-feira Santa, há muitíssimas variações: desde aquelas que carregam apenas o esquife do Senhor Morto coberto por um pálio roxo e as imagens da Senhora Dolorosa, de Santa Maria Madalena e de São João Evangelista, seguidas pelo oficiante que conduz a relíquia do Santo Lenho e por figurantes caracterizados como personagens da História da Salvação, até aquelas que transportam todas as imagens que compõem os “quadros da Paixão” (tal como se fazia em alguns lugares do país, antigamente, na majestosa e hoje extinta “Procissão das Cinzas” na Quarta-feira de mesmo nome, dando início à Quaresma). Os andores, dos mais requintados e magnificentes (como os do Barroco) aos mais modestos e simples (tais como preparam as comunidades humildes de nossas periferias e do campo) são sempre enfeitados com dedicação expressa nas flores, nos tecidos, véus e almofadas. A concorrência do povo para carregá-los também é uma constante em nossas procissões da Semana Santa.

Há, ainda, paraliturgias e celebrações no interior de nossas igrejas (muitas vezes ambientadas com flâmulas roxas ou vermelhas nas suas fachadas, nas quais estão inscritas as siglas do Império Romano - SPQR - que condenou Jesus, cortinas vermelhas e roxas com estampas dos símbolos da Paixão e o piso coberto de folhagens ressecadas e cheirosas): vias-sacras e encontros da Campanha da Fraternidade; adoração ao Santíssimo; Ofício das Trevas; celebrações penitenciais; Celebração das Sete Dores de Nossa Senhora; Setenário das Dores; Comemoração de Passos; Celebração das Sete Palavras; Triunfo e coroação de Maria acompanhados do Regina Coeli; Hora da Mãe; Terços dolorosos; Versão popular do Canto da Paixão do Senhor; Via Matris; Via Lucis, dentre outras.

Constatamos, cada vez mais, que as encenações da Paixão – em geral muito belas e bem preparadas – têm tomado o lugar e o prestígio antes ocupado pelas procissões da noite da Sexta-feira da Paixão. Promovidas, muitas vezes, não pelas paróquias, mas por prefeituras municipais ou pela iniciativa privada, acabam prevalecendo sobre os ofícios religiosos e resumem (reduzem?) a Semana Santa de muitos católicos, porque, pelo espetáculo, contentam a emoção, mas alienam do sentido teológico, pastoral e oracional, que deveria ser celebrado em comunidade.

E os sons e cheiros? Os sinos dão lugar às matracas. O silêncio também é mais evidenciado por esses dias como gesto de recolhimento, introspecção e luto pela Paixão: silêncio na vida cotidiana, silêncio litúrgico e silêncio nas próprias manifestações de piedade, como na chamada Procissão do Silêncio (uma variante de nomenclatura para a Procissão do Senhor Morto na Sexta-feira Santa). Oliveiras, hortelãs e alecrins perfumam o Domingo de Ramos. A flor “dama da noite” impregna a Sexta da Paixão, concorrendo com os odores de alfazema ou manjericão com que se prepara o Senhor no esquife.

Como expusemos, as manifestações de piedade popular durante a Semana Santa são múltiplas e muito vastas por todas as paróquias, o que torna difícil pontuá-las na sua totalidade. Algumas apresentam elementos muito característicos e afamados (inclusive pela mídia e pelo mercado turístico), como São João Del-Rei; Tiradentes; Sabará; Ouro Preto; Congonhas do Campo e outras cidades mineiras (que conservam elementos elegantes, dramáticos e eruditos da tradição barroca); Goiás; algumas cidades gaúchas; certas cidades do interior paulista; Monte Santo na Bahia (com suas inúmeras capelas na montanha) e muitos outros lugares do território nacional. Da mesma forma, alguns santuários marianos e do Senhor Sofredor recebem milhares de romeiros, às vezes “pagando” suas promessas com grandes cruzes que trazem às costas durante dias de sofrida caminhada pelas estradas: Pirapora do Bom Jesus; Tremembé; Iguape; Aparecida; Bom Jesus da Lapa; Divino Pai Eterno; Canindé; Juazeiro do Norte etc.

De maneira geral, nas grandes cidades ou núcleos urbanos mais secularizados, embora as manifestações de piedade popular na Semana Santa sejam mais “sóbrias”, discretas e escassas, muito se tem feito para recuperar esse espírito de devoção. Em tais lugares, resistiu ao tempo e aos fatores contrários, particularmente, a Procissão do Senhor Morto.

Mesmo com o Vaticano II valorizando a expressão devocional e reconhecendo o seu valor e sua contribuição inegável para a vida da Igreja, muitas das manifestações de piedade popular da Semana Santa entraram em declínio ou extinção, fruto de uma concepção errônea e distorcida do Concílio. É obvio que, em muitas ocasiões, o devocionalismo exacerbado tornou-se o centro de algumas comunidades e não gerava compromisso de fé comunitária, libertadora e engajada; contudo, o que o Concílio trazia como proposta era um “redirecionamento” do papel dessas devoções, apontando Jesus Cristo como centro, fonte e ápice da vida da Igreja e como Mestre-servidor que envia seus discípulos em missão a partir de uma experiência pessoal e comunitária com Ele, sobremaneira na Liturgia.

É certo, no entanto, que, muitas vezes, o limite entre aquilo que é devoção e o que é superstição, misticismo, sincretismo ou folclore é muito tênue: costumes estranhos e até curiosos como sacrifícios exagerados ou autoflagelação; malhação do Judas; banharem-se as imagens em essências ou até em bebidas alcoólicas antes das procissões; procissões das almas ou outras estranhas à Doutrina católica; abuso excessivo no consumo de peixes na Sexta-feira Santa... Há exageros que extrapolam as práticas do jejum e da abstinência recomendadas sábia e coerentemente pela Igreja e, embora antiquados, continuam ainda a povoar a mente do povo mais simples: da Quinta-feira Santa à noite até a noite do Sábado Santo (ou de Aleluia) proíbem de comer, conversar alto, rir, limpar as dependências das casas ou manter hábitos básicos de higiene pessoal, como se fossem “vaidades” sugeridas pelo “Diabo que está à solta” e buscando pecadores. Cabe à Igreja orientar os fiéis e legitimar aquilo que não agride os princípios da fé e não desencaminha do espírito da Liturgia.

Muitas vezes desconhecidas, menosprezadas ou incompreendidas, inclusive pelo Clero, as manifestações devocionais populares sustentam a vida de fé de muitas pessoas e comunidades que não têm acesso às celebrações litúrgicas e à presença de um presbítero na Quaresma e na Semana Santa. O simbolismo contido nessas práticas é significativo e não é meramente ingênuo. Motivados pelo Papa Francisco, que demonstra grande apreço pela religiosidade popular, vivamos legitimamente nossa cultura de fé no Cristo Morto e Ressurreto, a quem seguimos sob a lua cheia da Sexta-feira da Paixão rumo ao sol perene do Domingo da Ressurreição!

 Leonardo C. de Almeida
Associado da Academia Marial

 

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