Por Mariana Mascarenhas - Redação A12 Em Opinião Atualizada em 14 MAI 2020 - 16H15

A reconstrução de fatos pela mente: avanço ou retrocesso?

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Na série norte-americana Westworld, exibida pelo canal televisivo HBO, um personagem chamado Bernard é atormentado constantemente pela lembrança da morte de seu filho pequeno. Num determinado momento do roteiro, a situação é revertida quando sua memória sofre uma interferência e ele consegue transformá-la numa recordação do seu filho vivo. A questão é que ele não é um ser humano, e sim um robô, cuja reconfiguração memorial foi feita pelo seu criador.

Inclusive, a relação entre homem e máquina é o cerne da série, que apresenta um ambiente fictício habitado por robôs, cuja aparência é idêntica aos seres humanos, exceto por algumas diferenças, como o fato destes não poderem ter a memória reprogramada como aqueles. Não da forma como mostrado na série – ao menos por enquanto –, porém, novas descobertas científicas têm demonstrado, cada vez mais, ser possível alterar lembranças negativas nos humanos.

Em 2016, por exemplo, a revista Istoé publicou uma matéria com alguns estudos a respeito, como o da Universidade da Califórnia, nos EUA, que afirma que as recordações ruins são tão impactantes, que estimulam a concepção de uma rede de neurônios própria. Para alguns cientistas, trata-se de um mecanismo criado ainda no período em que o homem enfrentava os animais e as mudanças climáticas para sobreviver, como forma de auxiliar na identificação das ameaças.

Já outro estudo elaborado pela Universidade de Nova York fez um experimento em humanos que consistia na manipulação de suas memórias. Enquanto alguns voluntários passaram por uma reprogramação das lembranças ruins até seis horas após elas terem sido reativadas, outros passaram pelo mesmo procedimento num tempo superior ou ainda sem a reativação de tais recordações. Com isso, apenas o primeiro grupo de voluntários teve êxito ao deixar de sentir medo diante das lembranças ruins.

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Os estudos para apagar recordações prejudiciais são diversos e incluem medicamentos, as próprias substâncias cerebrais e até treinamentos. Trata-se de um grande avanço científico, especialmente, por abordar algo tão delicado e que afeta muitos. Afinal, quem não gostaria de se livrar das atormentações do passado?

Todavia, é interessante nos questionarmos sobre até que ponto é válido realizar tal procedimento e como o homem já faz algumas dessas mudanças por meio de uma certa ignorância do passado e, até mesmo, do presente. É importante considerar que as pesquisas científicas estão focadas em manipular experiências pessoais que podem nos causar certos transtornos psíquicos e que, provavelmente, não conseguiríamos mudar sozinhos. Mas há aquelas que nós mesmos conseguimos alterar e que não nos atingiriam diretamente, como um período histórico, por exemplo.

Ao contrário dos fatos reais, nossas recordações não, necessariamente, seguem uma cronologia e podem se mesclar o tempo todo. Em relação a acontecimentos históricos, nosso cérebro tem a capacidade de priorizar aspectos positivos, omitir os negativos e, assim, reconstruir períodos, muitas vezes, em prol daquilo que queremos acreditar. Guerras, doenças, crises econômicas, ditaduras, entre outros fatores, simplesmente se transformam em nossas mentes, o lado negativo é apagado, o que leva à repetição desses acontecimentos. Assim, observamos como a história nunca se concretiza de modo linear, mas cíclico. Conflitos do passado tendem a ser reproduzidos no presente de outras formas e, ainda assim, com seus aspectos negativos ignorados, veemente, por aqueles que se negam a enxergar os fatos como são.

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil
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No momento atual, enfrentamos uma pandemia que mudou, por completo, a nossa forma de viver. Diariamente, somos bombardeados por notícias sobre os milhares de infectados e de mortos por decorrência do novo coronavírus.

No entanto, há aqueles que ignoram tal cenário catastrófico e defendem o fim do isolamento social. Apagam, assim, fatos para construírem verdades; reprogramam o presente em prol de anseios próprios. Algo perigoso, principalmente quando os fatos ignorados envolvem a perda de vidas humanas.

Constroem-se, portanto, imagens de um cenário fictício que passam a imperar no lugar da realidade. O Prof. Dr. Jack Brandão, referência na área de estudos imagéticos no Brasil e no exterior, comenta a respeito:

“O fato por si só, não é modificado efetivamente, como se quer acreditar, mas é substituído por meio de um simulacro, de uma imagem criada que, efetivamente, não tem – nem nunca terá – o poder de modificar a realidade objetiva e factual do que se tem a sua volta”. Dessa forma, os ditos “reprogramadores” de tais fatos passam a vivenciar um universo paralelo e, ainda, influenciar outras pessoas a fazerem o mesmo, desconstruindo a hecatombe que se alastra pelo mundo.

Reprogramar a mente humana, portanto, é algo complexo e que pode ocorrer de diversas maneiras. O uso da ciência para tal fim com o intuito de amenizar problemas físicos ou psicológicos, ocasionados pelas más lembranças, pode até se revelar um avanço, apesar de esconder, muitas vezes, objetivos escusos. No entanto, quando falamos da reprogramação mental de fatos históricos, por exemplo, com o intuito de desconstruí-los em prol de nossas crenças, pode não só ocorrer um retrocesso pessoal, como também graves consequências sociais.

Escrito por
Mariana Mascarenhas
Mariana Mascarenhas - Redação A12

Jornalista e Mestra em Ciências Humanas. Atua como Assessora de Comunicação e como Articulista de Mídias Sociais, economia e cultura.

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