Por Pe. Rogério Gomes, C.Ss.R. Em Palavra Redentorista

O redentorista e o Ano da Fé

Estamos celebrando o ‘Ano da Fé’, uma proposta feita pela Igreja a todo o Povo de Deus para aprofundar a resposta batismal que se traduz em testemunho concreto no cotidiano. Como redentorista, depois de meditar, rezar esse tema, pensei assentar algumas pobres linhas e compartilhá-las como a experiência daquilo que intuí e penso ser fundamental à vida cristã e à vida religiosa consagrada.

1. Memória agradecida

O apóstolo Paulo, após definir que “a fé é uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que não se veem”, recorda o testemunho dos antigos, afirmando que pela fé que se reconhece como o universo foi organizado pela palavra de Deus, Abel ofereceu seu sacrifício a Deus melhor do que o de Caim, Henoc foi levado a fim de escapar da morte, Noé salvou a sua família, Abraão recebeu o chamado, obedeceu e partiu sem saber onde ia e residiu como estrangeiro na terra prometida, Sara, apesar da idade avançada tornou capaz de ter uma descendência, Abraão tendo sido provado ofereceu seu único filho Isaac, Isaac abençoou Jacó e Esaú em vista do futuro, Moisés, depois do seu nascimento, foi escondido pelos pais que não tiveram medo do decreto do rei, Moisés renunciou aos favores do faraó, Moisés deixou o Egito sem temer a ira do rei, Reis e profetas que conquistaram reinos e praticaram a justiça, foram martirizados e levaram vidas simples (Hb11).

ano_da_fe_2Paulo, ao fazer passar pelo coração (recordar) a experiência dos pais e mães da fé, interpela-nos a olhar para a história de nossa Congregação e (vice) província, missões e fundações e resgatar desde o nosso fundador até os dias atuais a experiência de fé dos que nos precederam e daqueles (as) que, em condições adversas ainda hoje, testemunham a fé em Cristo Jesus. Nesses termos, a fé nos é transmitida pelo testemunho e, se o testemunho dos antepassados, chega-nos até o presente e ainda suscita a entrega amorosa e inevitável, tantas vezes até da vida, para testemunhá-la significa dizer que a fé é viva e vivificante e faz responder ao essencial da vida.

Os nossos antepassados não conseguiram realizar ou colherem os frutos da semente que plantaram; a “fé antecipada” pode fazer-lhes antever não a obra em si, mas a promessa. Assim a fé é cheia de esperança, compreendida como fidelidade a e de Deus àqueles que seguem sua estrada e se traduz em amor, enquanto ação em favor dos pequeninos do Reino (Is 62, Lc 4,16). O amor é a dinâmica da manifestação concreta da fé: “assim também a fé, se não tiver obras, está morta em seu isolamento” (Tg 2,17). Não é à toa que a constituição 20 ao conceituar o missionário redentorista relembra-o dessas três virtudes: “Fortes na fé, alegres na esperança, fervorosos na caridade...” (Const. 20).

Aproximando-nos das Escrituras e do ensinamento paulino e do ano da fé, a primeira atitude que requer de nós é a da memória agradecida, primeiramente a Deus pela sua obra salvífica e, nela, ter suscitado homens e mulheres que, na sua simplicidade, nas encruzilhadas e nos revezes históricos reafirmaram a fé no Deus único que nos deu sua promessa desde a eternidade; essa memória agradecida se estende aos nossos fundadores da Congregação, (vice) província, missões e fundações que a fundaram carismática, institucional e estruturamente, e àqueles (as) que a fundam a cada dia no silêncio esperançoso e no amor concreto, traduzido na acolhida de homens e mulheres com seus corações feridos e nas inúmeras experiências pastorais. Precisamos retornar ao nosso baú espiritual que, desde a fundação do mundo e da história da congregação, contém tesouros de inestimável valor; há que se lapidá-los e a memória agradecida aos nossos antepassados nos pede que façamos o polimento desse bem espiritual que possuímos e extraiamos dele o que de mais precioso possuímos e possamos continuar a nossa história de fé no projeto salvífico que Deus nos confiou, apesar de nossas fragilidades. A fé é um olhar e salto antropológico que encontram ressonância no horizonte transcendental e se descortina como gratuidade de Deus para que o ser humano possa intuir o profundo mistério de si mesmo e do próprio Deus e projete sua vida no horizonte da esperança e do amor.

2. Pensar a fé em um mundo turbulento e com nossas contradições

Os Estatutos Gerais recordam que o “estilo da missão entre os fiéis deve, em nossos dias, visar principalmente a conversão à fé, porque os fiéis estão sujeitos a uma crise generalizada de fé. O contexto social, marcado pelo pluralismo cultural, não pode mais ser chamado cristão e não oferece à fé estruturas externas de apoio” (EG 014b). Trata-se de um fenômeno real que tem se evidenciado nas últimas décadas. Nos últimos tempos, uma das grandes preocupações eclesiais, parece ser o esvaziamento das igrejas, a secularização, o relativismo e as estratégias ultimamente foram o retorno a novos movimentos eclesiais tradicionais e integralistas e a tradições que muitas vezes não dizem absolutamente nada, a não ser suscitar a curiosidade do homem e mulher pós-modernos. Talvez é hora da Igreja, enquanto instituição, perguntar se tantas ações não são inoperantes e se, diante de tantos desafios, não está respondendo a problemas extremamente novos com respostas que já não dão conta da complexidade dos fenômenos envolvidos. Enquanto o carisma for aprisionado por esferas de poder dentro da Igreja e suas Instituições, o evangelho não será anunciado de modo sempre novo e o anúncio será mero dogmatismo apologético. Diante disso, as Constituições e Estatutos não propõem um retorno ao passado remoto, de saudosismo e de velhas tradições, mas convidam a ler os sinais dos tempos e os tempos dos sinais. Certamente esse é o desafio que a atualidade nos impõe e que devemos perseguir.

O ano da fé está sendo marcado por uma crise purificadora. Parece que se começam a ruir certas quinquilharias curiais. Bento XVI certamente chegou à encruzilhada e teve que, diante daquilo que viu, sentiu e sonhava, cortar na própria carne, fazendo desmoronar o velho edifício fundado sobre o poder das púrpuras curiais e de um retorno à segurança dos muros que agora ouvem e veem... Como teólogo inteligente foi capaz de desferir, em tempo, um golpe mortal e estratégico para por fim às guerras internas e salvar a própria instituição do seu distanciamento evangélico. Na sua última Audiência Geral, em palavras simples, mas densas, descreve a situação da barca de Pedro.... Foi uma parte do caminho da Igreja que teve momentos de alegria e de luz, mas também momentos não fáceis; senti-me como São Pedro com os Apóstolos na barca no mar da Galileia: o Senhor nos doou tantos dias de sol e de leve brisa, dias no qual a pesca foi abundante; houve momentos também nos quais as águas eram agitadas e o vento contrário, como em toda a história da Igreja, e o Senhor parecia dormir. Mas sempre soube que naquela barca está o Senhor e sempre soube que a barca da Igreja não é minha, não é nossa, mas é Sua. E o Senhor não a deixa afundar; é Ele que a conduz, certamente também através dos homens que escolheu, porque assim quis. Esta foi e é uma certeza, que nada pode ofuscá-la. E é por isto que hoje o meu coração está cheio de agradecimento a Deus porque não fez nunca faltar a toda a Igreja e também a mim o seu consolo, a sua luz, o seu amor.

Estamos no Ano da Fé, que desejei para reforçar propriamente a nossa fé em Deus em um contexto que parece colocá-Lo sempre mais em segundo plano. Gostaria de convidar todos a renovar a firme confiança no Senhor, a confiar-nos como crianças nos braços de Deus, certo de que aqueles braços nos sustentam sempre e são aquilo que nos permite caminhar a cada dia, mesmo no cansaço. Gostaria que cada um se sentisse amado por aquele Deus que doou o seu Filho por nós e que nos mostrou o seu amor sem limites. Gostaria que cada um sentisse a alegria de ser cristão.

A metáfora da ‘barca de Pedro em águas turbulentas’ traduz aquilo que os cristãos católicos estavam sentindo. Desesperança, redes vazias. Talvez a metáfora de Jesus que parecia dormir nos faz pensar em dois aspectos: a confiança divina no ser humano que com suas fragilidades, seus medos que busca, com suas forças, colocar essa barca em mar calmo; demonstra o sentido de sua confiança no Pai que pelo Espírito é capaz de ordenar o caos. Do caos das águas o Espírito pode suscitar algo novo, um respiro para a própria Igreja e um revigoramento à Vida Consagrada – lançar as redes para águas mais profundas.

 

Da mesma forma que nosso organismo necessita do alimento cotidiano, também a nossa fé precisa nutrir-se.

Além disso, as águas turbulentas, o movimento da decantação que separam as impurezas para que atinja a sua verdadeira essência.

O momento atual da Igreja deve ser lido à luz da caminhada de Emaús (Lc 24, 1-33). A Igreja chegou à encruzilhada do caminho de Emaús, no escurecer, no seu sentido bíblico – a hora das trevas – e teve que fazer a opção fundamental de convidar o Mestre como os discípulos o fizeram: “permanece conosco, pois cai a tarde e o dia já declina” (Lc 24, 29). Em outras palavras: “É noite, e o Senhor é a luz do mundo, entre em nossa casa, em nossa comunidade, pois estamos na escuridão... Se o Senhor passar, perdemos a Luz. Fique conosco, Senhor, entre em nossa casa, não passe adiante, faça nosso coração arder... estamos desesperançados”. O texto lucano mostra o caos da comunidade que não compreende e ainda não digeriu o processo da morte de Jesus. Restavam as quinquilharias, os ressentimentos, as ninharias, as dúvidas, os messianismos, a desesperança, a falta de fé (Lc 24, 18-24. O coração acomodado, indiferente que já estava disposto, no momento da encruzilhada, fazer com que cada um optasse por seguir o seu caminho individual e permanecer na escuridão. E o próprio Mestre, após confrontá-los e chamá-los de “insensatos e lentos de coração” (Lc 24, 25) e recordar-lhes a Escritura, simula seguir adiante e provar-lhes: fazê-los enxergar, provocar-lhes um choque, fazê-los retomar ao caminho da comunidade, do encontro, da oração, do partir o pão, da condivisão da vida que é marcada por pecados e virtudes, o que não nos diminui. Por isso Deus nos fez assim. Somente assim o coração da comunidade volta a arder. Certamente a simulação do Mestre em passar adiante é proposital... é a impressão do forasteiro não acolhido, que se vê sem lugar; os discípulos ainda estavam preocupados com seus projetos pessoais e o Mestre pode ter se sentido excluído...; mas a memória do ensinamento da Palavra faz com que retomem à sensibilidade e convidem o ‘desconhecido’ para entrar na casa, lugar da intimidade, das relações, onde se desenrolada a cotidianidade da vida.

Parece ser este o momento eclesial. A escolha de “alguém do fim do mundo”, do ilustre desconhecido que assume para si o nome comum dos mortais – Francisco (pobre e missionário) que convida a pensar em tempos novos do Bispo de Roma que “preside na caridade outras igrejas” e da colegialidade, revela para nós o tempo auspicioso da esperança, da fé provocativa que e faz reconstruir os caminhos e convida a comunidade eclesial em todos os sentidos à necessidade de ser discípula, a caminhar, a confrontar-se e a fazer a opção pelo essencial que é Jesus Cristo, a razão de nossa vida cristã e da nossa Vida Consagrada, com nossos vícios e virtudes. E tempo de retomarmos ao nosso ‘primeiro amor’ que nos motivou e motivará a seguir o caminho da Vida Consagrada. Chegamos ao momento crucial: ou arriscamos a chamar o forasteiro que nos traz a luz ou morreremos na escuridão de nossas certezas fundadas em um coração incapaz de se entusiasmar e arder com a força da luz redentora que nos faz retomar as Escrituras e ao partir do pão e voltar à comunidade para dividir a alegria do que experimentamos (Lc 24, 33).

Fé, cruz, céu

3. Retorno às fontes orantes

O Papa Bento XVI, em A porta da fé, propõe a toda Igreja, neste ano da fé, a profissão do Credo, intensificar a celebração da fé na liturgia e de modo especial a Eucaristia e o estudo dos conteúdos do Credo que se encontram no Catecismo da Igreja Católica.3 Precisamos ir além. Assim como Paulo recorda os antepassados na fé, para nós Redentoristas é um momento de revigorá-la retomando a vida dos nossos antepassados na fé, em chave hermenêutica nova. É de fundamental importância relembrar os demais santos e beatos e estudar e rezar a vida dos nossos mártires, pois são o testemunho daqueles que professaram a fé a ponto de darem a própria vida; meditar os textos fundantes da Congregação Is 61 e Lc 4,14-22, considerando os novos desafios pastorais que nos são propostos e a reestruturação da Congregação podem-nos trazer novos insights carismáticos de como acolher nossos destinatários e, com eles, anunciar a Boa-Nova do Reino; reler as nossas Constituições e Estatutos, o nosso quinto evangelho, à luz das novas transformações sociais, econômicas, tecnológicas, religiosas, culturais, etc. e perceber nelas quais são os fundamentos que podem nos sustentar nesse mar tempestuoso e nas estradas e encruzilhadas de Emaús e quais são os pontos que devemos atualizar, pois já não respondem adequadamente às novas transformações.

4. O que precisamos revigorar

Da mesma forma que nosso organismo necessita do alimento cotidiano, também a nossa fé precisa nutrir-se. Essa nutrição acontece pelo cultivo da espiritualidade pessoal e comunitária por meio da oração, meditação, estudo e meditação cotidiana e da vida apostólica. A espiritualidade garante-nos, não somente o avivamento da fé, mas também de nossa vocação, o revigoramento do nosso ‘sim cotidiano’, o sentido de nossa consagração e a forma de agirmos com os nossos destinatários. Isso não quer dizer que estaremos isentos das noites escuras. Aliás, tantas vezes o caminho da fé é trilhado na incerteza e nas noites escuras; o coração ardente pelo desejo de Deus faz encontrar a trilha correta e a certeza de chegar ao destino correto, mesmo se o mar é tempestuoso e o Senhor parece dormir. “A fé nos dá segurança, paz e convicção de que estamos constantemente envolvidos pelo amor de Deus”. A fé constitui uma diferente visão do mundo, um outro modo de ver, principalmente, aquilo que é difícil. O último Capítulo Geral nos convida a “anunciar o Evangelho de modo sempre novo - com esperança renovada, corações renovados, estruturas renovadas para a Missão”. Para isso, devemos dar o salto qualitativo da fé e percebermos no convite à desinstalação, ao caos. O Espírito que renova o terreno dos nossos corações para que possam se renovar e florescer só age no caoticidade de nossas dúvidas, de nossas incertezas, na tomada de consciência de que é preciso convidar o Senhor para que ele permaneça conosco, faça-nos ver novos horizontes e o nosso coração arder e nos livre do que nos impede de sair correndo e anunciar o que experimentamos na Sua presença.

Escrito por
Pe. Rogério Gomes, C.Ss.R. (Foto Deniele Simões JS)
Pe. Rogério Gomes, C.Ss.R.

Missionário redentorista, formado em Filosofia e Teologia, com doutorado em Teologia Moral. Lecionou no ITESP e na Academia Alfonsiana de Roma. Atualmente é Conselheiro do Governo Geral da Congregação Redentorista.

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Por Luis Henrique Santos Ribeiro, em Palavra Redentorista

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