Setembro: o mês da Bíblia, marcado por festas marianas
Imagem Academia Marial de Aparecida
O mês de setembro oferece uma feliz coincidência litúrgica: sendo tradicionalmente o mês da Bíblia no calendário pastoral brasileiro, está simultaneamente coalhado de comoventes festas marianas.
No dia 8 de setembro celebramos a Natividade da Virgem, reconhecendo nela a aurora que anuncia o nascer do Sol da Justiça (cf. Ml 3,20; Lc 1,78).
No dia 12, veneramos seu Doce Nome, contemplando como o nome de Maria é bálsamo que se derrama (cf. Ct 1,3).
No dia 15, meditamos suas Dores, unindo-nos à Igreja, que associa em seu culto as chagas de Cristo Redentor e a Compaixão de sua Mãe.
Esta convergência é providencial. O papa Bento XVI, por exemplo, recomendava que os estudiosos unissem a mariologia com a teologia da Palavra (Verbum Domini, 27).
Existe de fato uma analogia profunda, mas pouco explorada, entre a cooperação de Maria na Encarnação e sua participação na formação das Sagradas Escrituras.
Assim como Maria deu um corpo humano ao Verbo eterno, possibilitando nossa salvação, ela também cooperou para que a Palavra de Deus assumisse um “corpo” textual nas Sagradas Escrituras, possibilitando nossa instrução na fé. A Mãe do Verbo encarnado também é a Mãe do Verbo revelado.
1. O fundamento da cooperação mariana com a Palavra de Deus
A relação de Maria com as Escrituras não se limita aos textos neotestamentários que narram sua participação histórica nos mistérios cristãos. Estende-se a toda a revelação bíblica, graças a um fundamento meta-histórico: sua predestinação eterna como Mãe do Verbo de Deus.
A “Mulher” prometida no proto-evangelho
Maria é a “Mulher” anunciada no paraíso para esmagar a cabeça da serpente (cf. Gn 3,15). Sua cooperação com a obra salvífica começa, portanto, antes da Anunciação por São Gabriel, iniciando na predestinação eterna de Deus. Escolhida desde a eternidade para ser a Mãe do Redentor, recebeu por isso mesmo os privilégios que a prepararam para esta missão sublime.
Se toda a revelação no Antigo Testamento era uma preparação para a vinda do Messias, e se Maria é cooperadora necessária desta vinda, então ela é também, por consequência, cooperadora na inspiração dos textos que preparam e anunciam os mistérios cristãos. O Espírito Santo, que a inspirou a dizer “faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38), já inspirava os profetas que anunciavam a vinda do Emanuel (Is 7,14; Mt 1,23).
As prefigurações marianas no Antigo Testamento
Esta perspectiva ilumina a presença das grandes personagens femininas da Bíblia. Eva, Sara, Rebeca, Raquel, Míriam, Débora, Ester, Judite — todas prefiguram aspectos da missão de Virgem Maria. Quando o Espírito inspirou os hagiógrafos a narrar suas histórias, tinha em vista Maria como cumprimento perfeito de todas essas prefigurações.
Talvez seja Judite quem represente o tipo mariano mais perfeito do Antigo Testamento, constituindo uma verdadeira chave para compreender a missão de Maria na história da salvação. O próprio nome “Judite” (literalmente “a judia”) não designa uma pessoa específica, mas indica a representação da mulher ideal do povo eleito, a perfeita filha de Sião.
Diante da ameaça de aniquilação do povo de Deus pelas forças do mal (simbolizadas na coalizão de todos os inimigos históricos de Israel sob o comando de Holofernes), Deus suscita uma mulher que, confiando plenamente nele, desce até a tenda do inimigo e lhe decepa a cabeça.
É impressionante a correspondência entre as palavras dirigidas por Ozias a Judite — “Tu és bendita, ó filha, pelo Deus altíssimo, mais que todas as mulheres da terra” (Jt 13,23) — e as de Isabel a Maria: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (Lc 1,42). Se ambas são proclamadas “a mais bendita”, uma deve ser necessariamente o cumprimento da outra.
Os livros sapienciais também oferecem certo tipo de prefiguração mariana ao descreverem a personificação da Senhora Sabedoria em Provérbios 8, Sabedoria 9, Sirácida 24 e Baruc 3. A inspiração destes textos já contemplava, na predestinação eterna, aquela que viria a ser a Sede da Sabedoria encarnada.
Maria como figura da Igreja geradora das Escrituras
A tradição patrística reconhece em Maria a figura perfeita da Igreja (typus Ecclesiæ). Esta dimensão eclesiológica fortalece a analogia que estamos explorando.
Se Maria é o ícone da Igreja, e foi a Igreja que, sob inspiração do Espírito Santo, reconheceu, preservou e transmitiu as Escrituras, então a maternidade de Maria sobre o Verbo encarnado encontra seu paralelo na maternidade da Igreja sobre a Palavra escrita.
Israel, a assembleia do Antigo Testamento, gestou as Escrituras hebraicas ao longo de séculos. Por sua vez, a Igreja apostólica gestou o Novo Testamento. Maria, como filha de Sião e membro supereminente da Igreja, participa de ambas as gestações.
Tanto Maria quanto a Igreja deixaram-se inspirar pelo Espírito Santo: Maria na Encarnação do Verbo, a Igreja na composição dos textos que profetizam e testemunham essa Encarnação.
A mediação pela corporeidade: o modo divino de revelar-se
Um aspecto fundamental desta analogia reside na categoria de corporeidade. Maria não foi um simples “canal” através do qual Jesus passou para chegar até nós. Ela lhe deu sua própria carne, seu sangue, sua humanidade concreta. O Verbo eterno tornou-se acessível aos homens precisamente através do corpo que recebeu de sua Mãe.
De modo análogo, os hagiógrafos deram à Palavra divina um “corpo” linguístico, cultural e histórico. Paulo escreveu com seu temperamento ardente e sua formação farisaica; João empregou sua sensibilidade mística e contemplativa; Lucas utilizou sua precisão de médico e historiador. Sem essas “corporeidades” humanas específicas, a Palavra de Deus permaneceria inacessível aos homens de todos os tempos e culturas.
Como ensinou Tertuliano, “a carne é o eixo da salvação” (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1015). Deus não opera por pura espiritualidade, mas através da mediação corporal, sacramental e eclesial. A tentação de buscar um acesso “direto” à revelação divina, sem mediações, é na verdade uma recaída no espiritualismo gnóstico, “sem Deus e sem carne” (Francisco, Gaudete et Exultate, 37), sempre rejeitado pela Igreja.
2. Ações concretas de Maria para a geração das Escrituras
Seu testemunho sobre a infância de Jesus
As narrativas da infância nos evangelhos de Mateus e Lucas dependem fundamentalmente do testemunho de Maria. Ela é a única fonte possível para os relatos da Anunciação, da Visitação, dos detalhes do nascimento em Belém, da apresentação no Templo, da fuga para o Egito e do retorno a Nazaré. Lucas explicitamente anota que “Maria conservava todas essas coisas, meditando-as no seu coração” (Lc 2,19.51).
Maria não foi uma testemunha passiva desses eventos. Ela foi a primeira exegeta da Palavra, interpretando os sinais divinos através das Escrituras. Permaneceu com os apóstolos após a Ascensão (cf. At 1,14), compartilhando suas memórias com a Igreja primitiva, tornando-se fonte viva da Tradição que posteriormente se cristalizou nos textos inspirados.
Sua interpretação teológica
O Magnificat (Lc 1,46-55), além de ser um hino de louvor, é uma verdadeira hermenêutica bíblica. Maria interpreta sua própria experiência através da Bíblia, fazendo eco ao Cântico de Ana (cf. 1Sm 2), aos Salmos e aos Profetas. Ela realiza a primeira teologia da Encarnação, mostrando como o advento de Cristo cumpre e supera todas as promessas antigas.
Por outro lado, seu conselho em Caná da Galileia — “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5) — constitui uma palavra profética que ensina a autêntica obediência cristã. João preservou esta palavra como revelação inspirada, reconhecendo em Maria a primeira discípula e mestra da fé.
Sua oração no Espírito Santo
Se Maria estava presente quando o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos em oração no dia de Pentecostes (At 2,1ss), e se o mesmo Espírito inspirou as Escrituras (2Tm 3,16), então sua maternal presença cooperou com a inspiração dos autores sagrados.
Enquanto os hagiógrafos escreviam sob inspiração divina, Maria intercedia pela Igreja nascente. Sua oração materna sustentou a inspiração que deu origem ao Novo Testamento.
3. A posição singular de Maria na economia da salvação
Maria é a nova Eva
Ainda há outro argumento que nos leva a afirmar que a cooperação de Maria com a Palavra encarnada corresponda à sua cooperação com a Palavra revelada: a posição absolutamente única da Virgem Maria na economia da salvação.
Sua redenção preventiva na Imaculada Conceição fez dela a primeira entre os redimidos, capaz de ser medianeira em seu Filho Redentor, o novo Adão, assumindo o papel de nova Eva e nossa Mãe na ordem da graça (cf. Catecismo da Igreja Católica, 967-970).
De fato, em virtude de sua entrega ativa aos planos de Deus, sua maternidade sobre a Igreja e sobre a Palavra não é meramente passiva ou receptiva. Maria não recebe passivamente os frutos da redenção, mas participa ativamente de sua realização, acolhendo a Cristo na Anunciação e abraçando o mistério pascal ao pé da cruz.
Consequências para a vida da Igreja
Se Maria é verdadeira Mãe da Palavra escrita, então toda autêntica leitura católica da Bíblia precisa ser mariana, ao menos implicitamente. Interpretar as Escrituras sem referência à mediação materna de Maria seria como tentar conhecer Jesus prescindindo de sua Mãe, o que em tese é possível, mas na prática é empobrecedor.
Isto não significa impor interpretações marianas forçadas a todos os textos bíblicos, mas sim reconhecer que Maria, como primeira exegeta e Mãe da Igreja, oferece o contexto interpretativo adequado para toda leitura eclesial das Escrituras. Sua contemplação orante (“meditando em seu coração”) torna-se um modelo hermenêutico para toda a Igreja.
A devoção mariana é, portanto, mais do que um ornamento piedoso acrescentado à fé cristã. Constitui uma dimensão intrínseca de toda autêntica espiritualidade bíblica. Maria nos conduz ao coração mais profundo da Palavra de Deus, ensinando-nos a ouvir e a interpretar as Escrituras, pondo-as em prática.
Conclusão: Maria está no coração do mês da Bíblia
A convergência entre o mês da Bíblia e as festas marianas de setembro nos dá oportunidade, portanto, de fazer uma reflexão teológica profunda. Em Maria, a Palavra de Deus encontrou tanto o seio virginal que a gerou corporalmente, quanto o coração contemplativo que a meditou, preservou e transmitiu à Igreja de todos os tempos.
Que Nossa Senhora, Mãe da Palavra encarnada e da Palavra escrita, nos ajude a acolher com coração puro e mente esclarecida o duplo alimento que o Senhor Jesus nos oferece: seu Corpo eucarístico e sua Palavra revelada, ambos nascidos de sua cooperação materna no mistério da nossa salvação.
João Carlos Nara Júnior
Associado da AMA
Vaticano publica nota doutrinal sobre títulos marianos
Aprovado pelo Papa Leão XIV, o documento publicado é fruto de um trabalho de vários anos e destaca a preocupação dos últimos pontífices em relação ao tema.
Estudo e partilha marcam o IV Congresso Bíblico de Aparecida
Já consolidado pela Academia Marial de Aparecida, o evento é uma importante ferramenta de formação e de incentivo ao aprofundamento na Bíblia Sagrada.
Congresso Bíblico promove aprofundamento na Palavra de Deus
Único no Brasil, o evento promovido pela Academia Marial de Aparecida reúne, no Santuário Nacional, fiéis e estudiosos em momentos de formação e espiritualidade
Boleto
Carregando ...
Reportar erro!
Comunique-nos sobre qualquer erro de digitação, língua portuguesa, ou de uma informação equivocada que você possa ter encontrado nesta página:
Carregando ...
Os comentários e avaliações são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do site.