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Padre Rogério Gomes comenta o aspecto teológico e moral da tecnologia moderna

Superior Geral Redentorista especializou-se em bioética na Academia Alfonsiana de Roma e mantém-se atualizado no desenvolvimento da reflexão científica

Escrito por Redentoristas

07 ABR 2024 - 06H10 (Atualizada em 10 ABR 2024 - 10H16)

Scala News

"Explorando a fronteira entre a humanidade e a tecnologia". Este é o título de uma recente entrevista com o Superior Geral Redentorista Pe. Rogério Gomes, C.Ss.R, publicada no site do Instituto Teológico de São Paulo (ITESP)Leia MaisInteligência Artificial e Paz: Papa pede para que a tecnologia seja usada para o bemTecnologia sem vício: equilibrando a Era Digital e a vida realTecnologias na promoção do desejo de aprender mais e da Comunhão

A entrevista ocorreu no contexto da informação de que Noland Arbaugh, 29 anos, tetraplégico após um acidente de mergulho na água, recebeu um implante cerebral que lhe permite controlar sozinho um mouse de computador. A introdução de tecnologias como esta desafia-nos a refletir sobre a natureza da humanidade, a dignidade humana e os limites éticos da intervenção tecnológica no corpo humano.

O Padre Rogério Gomes especializou-se em bioética na Academia Alfonsiana de Roma e, apesar das suas inúmeras responsabilidades como Superior Geral, mantém-se atualizado no desenvolvimento da reflexão científica em resposta aos novos desafios do progresso tecnológico.

Confira a entrevista com o Superior Geral Redentorista:

ITESP: Do ponto de vista ético e teológico, como o senhor avalia o potencial impacto do implante de chip cerebral, desenvolvido pela Neuralink, na compreensão da natureza humana e na relação entre tecnologia e espiritualidade?

Pe. Rogério Gomes: Entendo este tipo de tecnologia como um processo de evolução humana em si. Desde o surgimento do ser humano na Terra, sua relação com a tecnologia é evidente. O mito de Prometeu esclarece bem esta realidade. Quando ele rouba o fogo dos deuses, ele é punido. O fogo, a tecnologia dos deuses, não pode ser concedido aos humanos, pois os potencializa e, portanto, a sua punição. Basicamente, a tecnologia nasce da condição frágil do ser humano, que, a partir de sua inteligência, cria mecanismos para superá-la, transformar o ambiente em que vive e utilizá-la para suas próprias necessidades.

Numa primeira aproximação, poderíamos dizer que a tecnologia nasce como uma extensão e aprimoramento do corpo humano, como um dispositivo para satisfazer necessidades como visão, velocidade, força, etc. O problema começa a surgir em relação ao uso do fogo roubado dos deuses, o que faz com que a reflexão passe de uma dimensão instrumental para a ética e suas implicações. E aqui toda a conversa sobre a chamada neutralidade científica e a própria tecnologia é desperdiçada. A tecnologia não é apenas um conjunto de técnicas utilizadas por uma sociedade, mas uma mensagem cultural.

A existência de corpos estranhos no corpo humano também não é totalmente desconhecida. Por exemplo, os xenotransplantes são técnicas de transplante de órgãos, tecidos e células de animais para outro organismo, com o objetivo de substituir partes doentes, sem necessariamente necessitar de um doador humano. É uma realidade existente, mas há um longo caminho a percorrer. Outra realidade é o chamado biohacking (bios+hacker), que busca reprogramar a natureza humana desde técnicas consolidadas até implantes de chips no corpo humano, com o objetivo de melhorar o corpo humano e aumentar a longevidade humana.

O uso de chips já é comum em animais de estimação e em fazendas especializadas em pecuária e animais de corte e aves. Em humanos, a utilização pode ser para armazenamento de dados de identidade pessoal e clínica, substituição de cartões de crédito, substituição de chaves e crachás, acesso a computadores, vigilância, etc. Toda tecnologia nasce com a promessa de revolucionar algo. No caso da tecnologia de Elon Musk, um dos usos é beneficiar pessoas com lesões traumáticas. Como não para por aí, certamente existe um desejo de melhorar o cérebro humano para armazenar informações, criar supercérebros, etc. Entre o jogo do marketing, a investigação científica, a viabilidade dos produtos e a legislação, há um longo caminho a percorrer.

A relação entre tecnologia e espiritualidade pode ser vista em três aspectos: o ser humano que dá continuidade à criação de Deus, aproveitando a inteligência que lhe foi dada e transformando a realidade para viver com dignidade; como o abandono de Deus, pois o homem afirma a sua própria capacidade de criar para subjugar a natureza e destruí-la e dominar outros povos (autonomia, narcisismo, egoísmo, autoritarismo). Por fim, como oportunidade para que a teologia e a própria espiritualidade cristã repensem certos conceitos criacionistas que hoje não são mais sustentáveis e devem ser reinterpretados à luz dos novos tempos.

Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal
Pe. Rogério Gomes foi aluno do ITESP e especializou-se em bioética na Academia Alfonsiana de Roma


ITESP: Considerando os aspectos morais, que preocupações éticas surgem ao contemplar a possibilidade de fusão entre a mente humana e a inteligência artificial? Como os princípios éticos tradicionais da bioética podem ser aplicados a este cenário?

Rogério Gomes: Não vejo possibilidade de fusão entre a mente humana e a inteligência artificial num curto espaço de tempo. Você tem que ver qual é a realidade e a estratégia de mercado. Não direi que é impossível, mas a engenharia do cérebro humano é muito complexa e, apesar dos enormes avanços já alcançados, é um mundo sempre novo e cheio de mistérios para desvendar. A inteligência artificial continua a ser um campo em evolução; Parece promissor, embora ainda seja incipiente, pois ainda não se conhecem suas reais dimensões. A fusão dessas duas realidades exigirá muita pesquisa e avanço técnico-científico.

Poderíamos pensar, dada a possibilidade de fusão entre a mente humana e a inteligência artificial, considerando os princípios tradicionais da bioética como autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, nestes termos de forma muito elementar, já que o tema exige muito mais . reflexão profunda.

Em primeiro lugar, é necessário esclarecer os riscos e benefícios desta possibilidade. Os envolvidos devem ser informados sobre o impacto na natureza humana e dar o seu livre consentimento. Em relação à autonomia, deve-se considerar em que aspectos ela compromete a pessoa para que possa escolher e tomar decisões racionais e escolhas morais de acordo com a sua própria liberdade; Quanto à não maleficência, se este tipo de tecnologia e as técnicas utilizadas para a sua funcionalidade não causarão posteriormente sofrimento à pessoa; Quanto à caridade, obter os maiores benefícios e minimizar os riscos para a pessoa.

No contexto da justiça, as pessoas que optarem por se submeter a este tipo de procedimento serão consideradas iguais ou superiores às demais? Quem se beneficia com esse tipo de tecnologia? Isso fará com que as pessoas sejam excluídas? Os profissionais envolvidos nesta área, se em determinado momento observarem que a referida tecnologia está sendo utilizada para determinados fins, terão direito à objeção de consciência? Como estão os governos preparados para os impactos desta tecnologia, por exemplo, no mundo do trabalho e nas relações sociais? No contexto da segurança digital, como será estabelecida a privacidade? Como essas tecnologias podem ser usadas para controlar pessoas? Como se vê, abre uma ampla discussão no campo da aplicação da justiça e do direito. Além do que já foi mencionado, neste campo de reflexão e possibilidades devemos considerar uma reinterpretação do princípio da responsabilidade, não mais nas categorias de Hans Jonas, mas atualizada.

ITESP: Diante do avanço tecnológico proposto pela Neuralink, qual seria, do ponto de vista teológico, o papel da Igreja e das instituições religiosas na orientação ética e moral dos fiéis diante desta nova fronteira de interação mente-máquina ?

Rogério Gomes: O primeiro elemento é conhecer a tecnologia e a sua utilização. Não é possível à Igreja e às instituições religiosas orientar os seus fiéis se estes não conhecem a realidade. E aqui é fundamental superar os preconceitos tanto no âmbito eclesiástico como no científico. Caso contrário, incorreremos nas brigas do passado que já conhecemos bem e teremos um diálogo entre narcisistas surdos. Atualmente, o diálogo interdisciplinar é uma oportunidade de enriquecimento mútuo.

Depois de saber profundamente o que é, o segundo passo é instruir as pessoas e ajudá-las a discernir. Por isso, é cada vez mais importante que quem é líder religioso estude e se treine para ter o conhecimento que ajude na formação da consciência. Sem isso cairemos no discurso do “é possível” e do “não é possível” que não leva o ser humano a refletir sobre os seus próprios atos e as consequências para si, para os outros e para as gerações futuras, considerando o princípio da responsabilidade (Hans Jonas).

E por fim, ajudar as pessoas a desmistificar certas teorias conspiratórias sobre seres de outro mundo que nos controlam, assim como a ficção científica, mas ajudar as pessoas a compreenderem que o uso da tecnologia sem qualquer ética pode ser um instrumento de controle utilizado por governos, empresas e particulares . indivíduos para controle e que podem ser protegidos de esclarecimentos.

Wild Squirrels/Shutterstock
Wild Squirrels/Shutterstock
Somos desafiados a refletir sobre a natureza da humanidade, a dignidade humana e os limites éticos da intervenção tecnológica no corpo humano


ITESP: Considerando o papel da teologia na formação moral, como os líderes religiosos podem orientar os fiéis a discernir os limites éticos e morais ao adotarem tecnologias que interferem diretamente na mente humana, como o chip cerebral Neuralink?

Rogério Gomes: O Vaticano II insiste em ler os sinais dos tempos. Também é importante considerar o tempo dos sinais. Por esta razão, insisto que os líderes religiosos devem formar-se e continuar a actualizar-se se quiserem prestar um bom serviço aos seus grupos. A pesquisa teológica pode oferecer ferramentas para refletir sobre temas como a Criação, a Evolução, o conceito de natureza, o direito natural, a ação humana, a responsabilidade, a justiça social, apenas para citar alguns. Isto exige uma teologia cada vez mais engajada no diálogo com outras áreas do conhecimento: filosofia, sociologia, psicologia, educação, direito, economia, ecologia, ética, bioética e moralidade.

Como um todo, o conceito de interferência deve ser considerado. Ainda é muito cedo para dizer sobre possíveis interferências. Implantar um chip já é uma interferência, pois se trata de um corpo estranho inserido no corpo humano. Interferências que distorcem o caráter humano? Mecanismos que permitem o controle externo da mente humana, fazendo com que o indivíduo perca sua liberdade e autonomia? Por isso é importante ter uma teologia que marque um caminho, sem perder a sua identidade, mas que acompanhe o processo evolutivo humano e ajude a discernir o melhor caminho a seguir.

Finalmente, é importante considerar que estes novos desenvolvimentos no mundo tecnocientífico afectarão cada vez mais a política, a economia, as relações sociais, o conceito de natureza humana e a percepção da própria vida como uma existência e uma realidade que deve ser manipulada. 

Em resumo, a discussão sobre os avanços tecnológicos e suas implicações éticas e teológicas é crucial não apenas para os estudiosos, mas também para a sociedade como um todo. Especialmente no campo da teologia, onde as reflexões sobre a natureza humana, a ética e a relação com a tecnologia são fundamentais, é fundamental levantar questões como a fusão mente-máquina e o impacto das inovações na compreensão da espiritualidade. Além disso, considerando que o Prof. Rogério Gomes é ex-aluno do ITESP, é importante abordar essas questões dentro da própria comunidade acadêmica, conectando a formação recebida no instituto com os desafios contemporâneos que a sociedade enfrenta.

.:: Inteligência artificial e analfabetismo funcional ::.

Fonte: Arison Lopes, Comunicação Institucional do ITESP (via Scala News)

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