Por Pe. Rogério Gomes, C.Ss.R. Em Palavra Redentorista Atualizada em 01 ABR 2020 - 09H51

A fé que nos encoraja

A realidade experimentada por todos nós, humanos, crentes e não crentes, nestes últimos tempos, fez buscar, no fundo do baú de nossa humanidade a virtude teologal da fé. Nenhum ser humano vive sem fé! Mesmo quem não acredita em uma divindade, seja qual for, crê na sua própria falta de fé e a alimenta.

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A fé uma centelha que anima nosso espírito para trilharmos nosso caminho existencial neste mundo.


Quem não crê nem mesmo em sua própria falta de fé não subsiste, autodestrói-se.
Portanto, com suas várias interfaces ela permeia o humano, mesmo que esteja latente. Ela é uma centelha presente na alma humana que anima nosso espírito para trilharmos nosso caminho existencial neste mundo. Encoraja-nos a caminhar. E na escuridão da noite, com suas tempestades, desperta nossos mitos e ritos fundantes para encontrarmos no reverso de nós mesmos uma tábua de salvação que nos dá serenidade ao coração.

As Escrituras a registra como adesão a Palavra de Deus e as implicações decorrentes. Hebreus 11 nos apresenta um texto belíssimo sobre a experiência de fé e, no seu início, a define de modo simples como “a realidade dos bens esperados, a prova das coisas que não se veem. Foi graças a ela que os antigos obtiveram um belo testemunho. Pela fé compreendemos que os mundos foram formados por uma palavra de Deus, de modo que o que se vê provém do que não é visível” (Hb 11,1-3). Mas é no Novo Testamento que esta terminologia prevalece, sendo usada inúmeras vezes.

Não será pelo fato de o Novo Testamento atestar dois eventos que, aos olhos humanos, não há uma explicação: a encarnação do Verbo e a sua morte e ressurreição? Não é ela a explicar-nos a loucura divina e, ao mesmo tempo, a alentar-nos, quando a ordem de nosso mundo interno e externo é subvertida? Ora, se assim o é, mais uma vez a fé é algo que nos faz perfazer o caminho de sentido para aquilo que a finitude de nossa compreensão não consegue responder, apenas intuir do mistério.

A pandemia do Covid-19 nos faz refletir sobre a nossa fé em todos os sentidos: sua existência, como elemento que nos anima e nos faz crer em um ser Supremo; a sua prova, ao passo que nos confronta sobre nossas crenças diante do perigo; e a sua ausência, como negação da própria humanidade e da divindade.

Quando não se tem fé na humanidade ou na divindade, temos a corrosão dos valores e a sociedade começa a entrar em um processo de autofagia, astenia e agonia profundas.

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A fé nos faz atravessar a noite escura do sentido das coisas.


Um
não-crente não necessita acreditar em Deus, no entanto, pode possuir fé na humanidade e cultivar valores que se confluem com aqueles cultivados pelo homem crente no transcendente. Um crente pode acreditar em Deus e não acreditar no humano, pode ser apenas um fundamentalista. O fundamentalismo é a mais profunda ausência de fé, é o uso esquizofrênico e manipulador do crer, transvestido de fé, para justificar as próprias neuroses decorrentes da falta de fé no divino e na humanidade. Por essa razão, o fundamentalismo permite matar em nome de Deus, pois nega a divindade do outro.

Leia MaisNão pode comungar? Reze a oração para a comunhão espiritualComo viver bem a nossa espiritualidade para ser mais feliz70 meditações para cultivar a espiritualidade no cotidianoExperimentar o deserto na vida espiritualA fé é uma certeza que comporta dúvidas, diferentemente do fundamentalismo que não o permite, e por isso, não se renova.

A fé apresenta-nos como confirmação do divino em nós que nos anima e nos encoraja e nos faz atravessar a noite escura do sentido das coisas e até mesmo do próprio crer, abrindo-nos os sentidos de nosso espírito, a tal ponto de nos fazer ouvir a voz divina, experimentá-la e ver a sua luz a iluminar nossos porões escuros, onde estão escondidos nossos medos e incertezas.

A fé é pedagógica, pois toma pela mão nossa existência para nos colocar nos braços da transcendência, permitindo-nos ver nosso lado luminoso e descortinar a esperança para ver o horizonte sem fim do divino. Nos momentos de desespero, ela é porto seguro!

Mas há uma fé que precisamos resgatar, enquanto sociedade, escondida como tesouro em um baú empoeirado. É a fé antropológica. Essa fé, independe de crer na divindade, mas na humanidade, não como um conceito absoluto, sim como lugar e condição para fazer o bem. Nesse sentido, a fé antropológica possui matizes éticas profundas e, pode, com muita naturalidade confluir com os valores da fé teológica. É o esquecimento desta fé antropológica que não nos permite ver o rosto do outro que se revela diante de nós, enquanto semelhante, próximo e vulnerável. Quando o ser humano se esquece do rosto do outro priva-se da própria visão e ao não enxergá-lo não o considera, minimizando-o como existência utilitária a ser descartada. Então, permite anulá-lo.

Certamente se tivéssemos cuidado de nossa humanidade de modo digno, não estaríamos tão desolados como estamos. E esse cuidado não o tivemos desde a nossa própria casa, enquanto lugar comum que habitamos e onde tecemos nossas relações. Nosso descuido foi fazendo acumular tantos males: ganância, lucro, guerras, violência, morte, exploração dos recursos do planeta, falta de compaixão e solidariedade com o próximo.

Chegou a hora de tomarmos consciência dessa dimensão de nossa vida e, tanto melhor, se convergirmos fé teológica e antropológica.

O homem de fé é aquele que se põe a caminho, mesmo sem saber onde chegará. Mas dentro de si há uma bússola que, em cada passo, oferece-lhe um lampejo a marcar o caminho correto. É como os pássaros que, de algum modo, intuem que o inverno chega e é necessário, junto com os demais, buscarem outro horizonte para experimentarem a luz do sol e sobreviverem.

Que este tempo de inverno nos guie rumo às belezas do nascer e do pôr-do-sol de nossa fé, a serem descortinadas em nosso porvir existencial. Andar com fé eu vou... caminhar com fé, andamos...


Perfil  do padre Rogério  Gomes  no Lattes. 


Escrito por
Pe. Rogério Gomes, C.Ss.R. (Foto Deniele Simões JS)
Pe. Rogério Gomes, C.Ss.R.

Missionário redentorista, formado em Filosofia e Teologia, com doutorado em Teologia Moral. Lecionou no ITESP e na Academia Alfonsiana de Roma. Atualmente é Conselheiro do Governo Geral da Congregação Redentorista.

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