Por Academia Marial Em Artigos Atualizada em 16 JUN 2021 - 16H59

Obra da Sagrada Família: Templo do Perfume Oculto

"Olha o que foi, meu bom José,
Se apaixonar pela donzela.
Entre todas a mais bela,
De toda a sua Galileia.
Casar com Débora ou com Sarah,
Meu bom José, você podia.
E nada disso acontecia,
Mas você foi amar Maria."(1)

Introdução


A obra Sagrada Família é construída em aquarela sobre papel, tem traços composicionais - à maneira da arte pastrina - na cor marrom, a escrita Mρθϓ ̸ ICXC(2) é executada na cor vermelha e o preenchimento das formas em matizes ocre dourado.

A aplicação de folha de ouro nos nimbos e estrelas mostra a presença de Deus Uno e Trino, Deus Filho (Jesus), Deus Espírito Santo (Esposo) e Deus Pai (Sabedoria) que reveste José. Com gestual largo, uma sutil sombra em marrom tinge o suporte contornando os personagens mostrando a materialidade humana diante do Mistério Divino em suas vidas.

A proposta deste artigo é contemplar a Espiritualidade mediante a leitura dos símbolos presentes.

Thiago Leon
Thiago Leon
Sagrada Família, obra do artista Lúcio Américo.


Apreciamos São José em terceiro plano e sua expressão corporal é de proteção. Em seguida Maria, sentada ao chão com as pernas cruzadas. Sua cabeça está levemente inclinada para frente, tem os olhos cerrados e toda a expressão facial emite uma calma contemplativa. A mão direita levantada como se abençoasse ou acariciasse a fronte do Divino Infante, enquanto a mão esquerda segura delicadamente a parte superior do braço de Jesus. A Criança Sagrada está sentada em seu colo. Ela tem a mão esquerda em descanso sobre o joelho direito e a mão direita solenemente posta em destaque em gesto litúrgico. A posição dos pés remete à iconografia oriental.

Os versos da epígrafe como toda a poesia expressa na música abordam duas forças: o sentimento e a escolha(3). As possibilidades de um futuro com outro contexto, sem as tempestades de pensamentos(4), vicissitudes e os óbices(5)  vivenciados nos primeiros anos da vida conjugal, não teriam sentido, seriam contra a força arrebatadoramente silenciosa que nascera e gradativamente foi nutrida, abrasando o coração de São José, que levou-o a distanciar-se de tudo, menos da fé, para amar Maria.

No capitulo XIX do livro O's rostos de Maria na Bíblia', sob o título 'Toma contigo Maria, tua esposa', há uma citação de Simone Weil(6), acerca da mudança radical do destino de José: “Os bens mais preciosos não devem ser procurados, mas esperados e acolhidos” (WEIL apud RAVASI, 2008, p. 184). Nessa frase encontramos palavras assertivas que podem mostrar a profundidade do sentimento de José por Maria.

Diante da imagem da Sagrada Família, o olhar de São José retém nossa atenção; ele sustenta um olhar expressivo criando um trânsito psicológico com aqueles que o contemplam, instigando-os a adentrar nesse mistério que é seu amor por essa jovem mulher, a Esposa Celeste do Espirito Santo e sua esposa terrena.

As palavras para descrever esse oceano onde sua alma navega e encontra a paz necessária para ser submergido é: Confiança e Amor.

Seu rosto, na obra, é de um jovem(7), dotados de sonhos e vitalidade ̸ virilidade, mas seu espírito tem ancianidade das eras alicerçadas naquilo que compõe sua descendência: a Sabedoria - no mais amplo sentido da palavra.

As frases que se seguem são fruto da espiritualidade patrística, escolástica e da Igreja Ortodoxa. Não há como deixar de pensar que José, através de Maria, presenciou a coragem dessa jovem de se colocar diante deste homem no intuito de adentrar no âmbito da alma, confiando em seu amor e sabedoria de discernimento, para relatar como concebeu o Verbo de Deus, tal qual Ester adentrou a sala do trono e diante de seu esposo pôs-se a falar (Est. 5:2a) .

Quando a tormenta de sua alma cessou, José vislumbrou uma intimidade com Deus que foi vivenciada por Moisés diante da Sarça (Ex. 3:2) e trouxe Maria para seu lado, para sua casa. A cada passo rumo a sua moradia, sacrificava todos os receios que assombravam seu coração, tamanha era a confiança em Deus e no seu amor pela a escolhida de seu coração. Ele foi o primeiro a retirar suas sandálias diante dela na pura intimidade do Amor. Vislumbramos nesse olhar que o artista plasmou a mesma alegria do Rei Davi quando conduziu a Arca para sua casa, sacrificando boi e bezerros cevados, e com grande júbilo dançou com todas as suas forças (2Sm. 6:13).

José coloca Maria no centro da tenda que armou para ela: seu coração e seus braços se tornaram os muros que a protegem; e ali a ama e dá testemunho disso, como fez seu antepassado Davi (2Sm. 6:17).

O Divino Infante está sentado em seu Trono como o Pantocrator(8). Essa iconografia é presente na tradição da Igreja Ortodoxa Oriental e é representada como adulto, mas estamos diante do Homúnculo(9)  – o Logos. Abençoa com sua mão e em seus dedos encerra-se a verdade trinitária, a sua identidade como a segunda Pessoa da Trindade e sua natureza divina como a terrena.

Jesus, como seu pai José, mantém o trânsito psicológico com o fruidor(10) , neles apreciamos a Aurora dos Dias. A Divindade experienciou a intimidade uterina de sua mãe, vivenciou seus sentimentos, desenvolveu-se humanamente ao ritmo de seu coração e fora alimentado pela sua força vital. Como Sacerdote Régio, diante de nosso olhar, ele compreende o que passa em nossa alma e sem pedir explicações, abençoa.

Maria ao centro da composição está serena. A gramática corporal que é construída, a beleza de sua figura, mostra sua abertura para a Nova Realidade que sustenta em seu colo na mais bela das perspectivas - redentora do gênero humano. Diante das situações complexas que abarca seu fiat(11), bem como diante da dura e verdadeira profecia de Simeão (Lc. 2:34), a confiança inabalável no Altíssimo que tudo modifica.

Seus olhos estão fechados. Contemplamos os Mistérios Insondáveis presentes no silêncio de seu ser. Com matiz ocre dourada, presente em toda a obra, ela se torna o Mar que reflete toda a divina Luz da amada e almejada Aurora; Oceano impenetrável ao próprio olhar dos anjos ; o Jardim Fechado; Relicário do Silêncio e o Templo do Perfume Oculto cuja fragrância é levada pela suave brisa visível através da movimentação conferida nos cabelos de José e Jesus.

Mulher que soube corresponder o amor a José da forma mais pura e abençoada como ama o Esposo Celeste, Uno e Trino, eternamente. José com sabedoria correspondeu a esse amor de maneira plena e consciente, o que nos toca de maneira única. Vislumbramos a ferida viva, pulsante e fortemente enraizada em sua alma, sinônimo do coração, no sentido de pertença a Deus quando nos confia pessoas para amar. Tudo através de um olhar...

Conclusão

Esse artigo encerra as contemplações que as obras de arte sacra de Lúcio Américo de Oliveira proporcionaram de maneira tão bela e profunda. Movido pelo Sopro do Espírito, sente-se chamado a divulgar o Mistério Salvífico por meio da Escrita Sagrada do Ícone. Numa abordagem contemporânea que ecoa a e divulga a Espiritualidade de Cláudio Pastro. Nelas, o iconógrafo Lúcio coloca sua alma sensível, e mesmo à maneira pastrina, é possível apreciar nos traços sua presença que nada interfere no que tange à apreciação do Sagrado.

Sua experiência de fé, de intimidade às verdades celestes, seu olhar à contemporaneidade que está ávida de alento espiritual, faz com que sua abordagem seja profundamente fecunda, permitindo que essas palavras fossem escritas.

Através do véu vislumbramos com o coração o Mistério que nossa compreensão não abarca e diante do Espelho aprendemos a importância do verdadeiro reflexo e de quando insistimos na permanência das aparências distorcidas, distanciamo-nos de nossa própria identidade recusando a viver a missão que nos foi confiada nos vários âmbitos que constitui a vida. Assumindo a missão, tornamo-nos a brisa que leva a fragrância do Perfume Oculto que emana do Templo que é Maria. Aprendamos com São José a sermos Justos, a amar intensamente e a ampliar nosso olhar diante da pessoa amada - o bem mais precioso!

Autor: C.G. Marinho
Conservador / Restaurador e Perito em Arte
Notas
(1) Musica Original: Joseph (1969). Composição: Georges Moustaki. Versão: Nara Leão. Interpretação Brasileira: Rita Lee (1970).

(2) MρθƳ – Mãe de Deus.
IH∑OY XPITO∑ (Grafia Grega) - Jesus Cristo. No período do medievo, a grafia passou a ser representada por IHCOYC XPITOC, de onde se originou a representação ICXC.

(3) Não abordo possíveis associações ̸ interpretações com o período histórico em que a musica foi sujeita, mas o sentimento expresso de maneira impar à jovem de Nazareh.

(4) Faz alusão a perturbação de são José quando viu Maria grávida. Essa terminologia está presente no Hino Akathistos na estrofe VI.

(5) Aquilo que impede, empecilho, estorvo.

(6) Escritora hebraica.

(7) Discorrer sobre os percursos da representação artística de São José ao longo dos séculos torna-se fascinante. No início, ele era representado como ancião que puxa o burrinho e com o decorrer dos séculos distancia-se dessa configuração para tornar-se um varão. Mas esse não é o objetivo dessas linhas.

(8) Essa palavra é rica de significados. De origem grega, sua tradução significa “Onipotente”, “Oniregente” ou “Aquele que tudo Rege”.

(9) "Homem Pequeno", ressignificado para a tradição cristã como o Logos de Deus. Encerra-se nessa imagem toda a essência divina da Trindade.

(10) Aquele que contempla e frui a sensação que a arte provoca.

(11) Palavra latina que significa "Faça-se", mas interpretado como “Sim”. Conhecido nesse contexto como o “Sim de Maria”.

(12) Hino Akathistos em honra da Virgem, Mãe de Deus, p. 05.

Bibliografia
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
Hino Akathistos em Honra da Virgem Mãe de Deus. Secretariado da Nacional de Liturgia.
RAVASI, Gianfranco. Os rostos de Maria na Bíblia. São Paulo: Paulus, 2008.

Dedicatória
À minha mãe que tanto amo e que me deu a vida; à Mãe Igreja, que tanto amo e que me ensina o que é a Vida.

À J.A.G. Marinho, sorriso que reverbera pela vida na Vida.

À J.G. Marinho, que nos dá tanto orgulho!

Ao Santuário Nacional que tanto bem me faz!

Ao Pe. Ulysses pelo acolhimento, amizade, ensinamentos e generosa atenção fraterna!

À Eliane, Bárbara e João Gabriel pela amizade, gentileza, acolhimento, paciência, ensinamentos e generosa atenção fraterna!

A todos que amo e fazem parte de minha eternidade!

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